Análise: Sunitas e curdos estão à margem dos planos militares do líder iraquiano
O primeiro-ministro Nouri al-Maliki se apresenta como o homem que pode unificar os iraquianos, mas, com o colapso de seu Exército diante do avanço militante sunita, ele assumiu um papel apenas: o de comandante em chefe do Iraque.
Maliki vem passando boa parte de seu tempo do lado militar do complexo presidencial, e alguns de seus assessores civis mais próximos começaram a trajar uniformes militares. Maliki passa a maior parte de seu tempo chefiando a guerra.
Ele se reúne com comandantes militares, viaja para as linhas de frente, faz discursos em campanhas de recrutamento, convocando jovens xiitas para o combate, e, segundo membros de seu círculo mais estreito, tem frequentes acessos de raiva.
O que ele não vem fazendo, segundo todos os relatos, é passar muito tempo buscando a conciliação política com os árabes sunitas e os curdos, algo que seus aliados internacionais em Washington e Teerã insistem que é a única salvação possível para o Iraque.
Mesmo o mais alto assessor de Maliki encarregado da reconciliação disse na segunda-feira que praticamente não há esperanças de êxito para o esforço.
"Agora temos guerra, não reconciliação", disse Amir al-Khuzai, amigo de longa data de Maliki.
"RECONCILIAÇÃO COM QUEM?"
O presidente Barack Obama já deixou claro que os EUA não darão ajuda militar ao Iraque a não ser que Maliki promova uma mudança drástica em sua política, buscando uma aproximação com sunitas e curdos numa manifestação de unidade nacional contra os militantes sunitas, cuja tropa de choque é o extremista Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL).
Sem isso, dizem analistas, o país corre o risco de uma guerra sectária renovada na qual Bagdá pode perder o controle sobre quase um terço do país pelo futuro previsível.
Mas Maliki dá poucos sinais de estar mudando. Assim como fez durante a crise semelhante -mas muito menos perigosa-de 2008 em Basra, está apostando na opção militar. Ele está determinado a usar os combatentes xiitas em quem confia para estabilizar o país e, ele espera, expulsar os insurgentes sunitas e voltar a impor o controle governamental sobre todo o território iraquiano.
Numa manifestação rara de concordância, o presidente iraniano, Hassan Rouhani, uniu-se a Obama para suplicar a Maliki que trabalhe com os sunitas e curdos. À medida, porém, que o líder iraquiano continua a resistir a esses chamados, as potências externas e políticos iraquianos de destaca questionam mais e mais se algum dia Maliki vai tomar essas medidas, e, se não o fazer, se é o caso de descartá-lo em favor de alguém que o faça.
Políticos xiitas dizem que, caso Maliki seja enfraquecido, um dos que poderia tomar seu lugar é o volátil Ahmad Chalabi, que em certa época foi favorito dos Estados Unidos, mas há muito tempo é visto como seu inimigo.
Por enquanto, a mensagem pública de Maliki a Obama e Rouhani é que simplesmente não é possível cooperar com os curdos e sunitas neste momento -que o Exército precisa, antes disso, recuperar o terreno perdido.
Em alguns momentos quase pareceu que Maliki estivesse fazendo um esforço para afastar os sunitas. Depois de tribos sunitas terem ajudado a derrotar a Al Qaeda, em 2008, ele cortou boa parte das verbas para elas.
Na procura de insurgentes, Maliki autorizou prisões em massa de sunitas e levou muitos deles para prisões que operam fora da lei. Ele acusou um político sunita destacado, Tariq al-Hashimi, de comandar um esquadrão da morte, obrigando-o a exilar-se no Curdistão, e perseguiu outros sunitas destacados.
Políticos xiitas disseram que há alguns gestos imediatos que Maliki poderia fazer que ajudariam a aliviar as tensões. Poderia libertar os milhares de prisioneiros sunitas detidos por suas forças de segurança e que se encontram presos sem ir a julgamento. Poderia unir-se a sunitas e curdos em declarações contra os militantes sunitas e poderia trabalhar com eles para reforçar as forças armadas regulares, em vez de recorrer a milícias xiitas.
Convencido de que há uma conspiração para enfraquecê-lo, Maliki fala com frequência de "políticos falidos" que estariam trabalhando com o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, enquanto seus associados descrevem "negócios escusos" entre curdos, o Estado Islâmico e os sunitas. As acusações são respondidas na mesma moeda por sunitas que já perderam a paciência e agora só querem a renúncia do primeiro-ministro.
Muitos políticos xiitas estão profundamente constrangidos com as condenações mais indiscriminadas lançadas pelo presidente. Um ex-integrante do governo de Maliki comentou que dizer que os curdos apoiam o Estado Islâmico "não é uma narrativa útil. Precisamos dos curdos. Até os iranianos estão dizendo isso a ele [Maliki]."
Para o ex-embaixador americano Ryan C. Crocker, o receio é que, sem reconciliação, o Iraque se divida em um "Sunistão" e um "Xiistão". Para impedir esse cenário, disse ele, os EUA terão que atuar com mão diplomática forte.
"Ou intervimos ao nível da Casa Branca e do secretário de Estado, ou isso vai se converter em um impasse sangrento", disse ele, "uma linha de separação entre Norte e Sul do país, ainda a ser traçada, mas provavelmente logo ao norte de Bagdá, com o estabelecimento de um Estado 'de facto' da Al Qaeda, e isso é totalmente apavorante".
Ainda na semana passada, na esteira da queda de Mossul, Maliki pareceu ter uma oportunidade para criar um bloco unificado, multissectário e multiétnico, para combater o Estado Islâmico e aqueles que o apoiam.
Numa longa reunião noturna com líderes sunitas e curdos, pareceu que seria possível emergir com uma posição unificada. Mas passaram-se horas e, quando os líderes saíram da reunião, não havia acordo.
Os sunitas teriam proposto a criação de um exército sunita, uma espécie de nova versão dos Conselhos de Despertar tribais que combateram a Al Qaeda em 2007 e 2008. Mas a ideia foi rejeitada por Maliki, ao mesmo tempo em que começavam a ser organizadas milícias xiitas.
Enquanto a ideia de exércitos separados, sunita e xiita, é indicativa da profundidade da divisão sectária, a incapacidade de Maliki de aproveitar o momento para tentar construir confiança revela muito, e sua rejeição incondicional da proposta deixou as lideranças sunitas sem nada para apresentar a seus seguidores.
Assim, o presidente do Parlamento, o sunita Osama al-Nujaifi, fez uma avaliação fortemente negativa de Maliki, aprofundando a divisão mais ainda.
"Não queremos este primeiro-ministro; o rejeitamos", disse Nujaifi. "Tentamos depô-lo em mais de uma ocasião."
Tradução de CLARA ALLAIN
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
Um mundo de muros
Em uma série de reportagens, a Folha vai a quatro continentes mostrar o que está por trás das barreiras que bloqueiam aqueles que consideram indesejáveis