Análise: Na diplomacia, Marina combina Collor, FHC e Lula
Aos poucos, a esfinge vai sendo decifrada.
A política externa de Marina Silva ganhou contornos mais claros e definitivos desde a divulgação, na última sexta-feira (29/8), do plano de governo da coligação liderada pelo PSB.
Dali emerge uma perspectiva liberal das relações internacionais, que mais faz lembrar as gestões diplomáticas de Collor e FHC do que as próprias concepções nacionalistas historicamente sustentadas pelo partido.
As posições registradas no plano de governo evocam a política externa de Collor em, pelo menos, três aspectos: na abertura agressiva proposta para o comércio exterior brasileiro; na exortação ao "regionalismo aberto", que não necessariamente privilegiará os acordos regionais sul-americanos, como Mercosul e Unasul; e, naturalmente, na intensa exploração política da pauta ambiental.
Cabe fazer a ressalva de que, se com Collor o meio ambiente era um filão político-eleitoral (que ganhou visibilidade com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em 1992, no Rio de Janeiro), com Marina há um envolvimento genuíno com a causa, que vem de longa data e é amplamente reconhecido pela comunidade internacional.
O documento da candidatura marinista aproxima-se ainda da agenda internacional de FHC, no que defende a maior adequação do Brasil aos grandes regimes internacionais de direitos humanos, não proliferação nuclear, promoção de democracia, mudança climática e livre comércio. Trata-se da atualização do discurso da "autonomia pela participação", tão caro aos formuladores diplomáticos peessedebistas.
Há acenos ao ecumenismo da política externa de Lula, mas o programa não se compromete com a manutenção de suas linhas mestras. Embora mencione a importância de iniciativas como Brics e Ibas, o texto ressalta a dificuldade em conciliar as políticas externas de seus membros. Apesar de discorrer sobre África e América Latina, o documento não concede prioridade às duas regiões - no que se afasta dos posicionamentos adotados sob os governos do PT.
Assim, o objetivo de revisão da ordem mundial sai de cena, dando lugar à ênfase no "poder brando" e na reputação nacional, a ser buscada pela adesão, e não pela contestação às normas e instituições globais vigentes. Infere-se que as reformas do Conselho de Segurança da ONU e do Fundo Monetário Internacional, por exemplo, não serão temas de alta relevância num eventual governo de Marina.
Aparentemente, portanto, a candidatura do PSB advoga uma política externa mais próxima do perfil das potências médias tradicionais (Canadá, Austrália, Holanda, Suécia, Japão, Coreia do Sul etc.) - o que não se combina perfeitamente com as necessidades e aspirações de um grande país emergente como o Brasil. A reboque dessa nova postura, vislumbra-se como possível efeito colateral o enfraquecimento das parcerias estratégicas com os países Brics, sobretudo em projetos conjuntos nos campos da defesa e das finanças.
Por fim, o programa de governo da candidatura Marina Silva explicita a intenção de pôr freios à "desitamaratização" da política externa brasileira. O reconhecimento do Ministério das Relações Exteriores como órgão competente para a implementação da diplomacia nacional é boa notícia.
O único risco é que, ao tentar reverter a tendência de esvaziamento funcional da Casa de Rio Branco, se cometa o equívoco análogo - e igualmente grave - de promover novo ciclo de insulamento burocrático, relegando a formulação da política externa exclusivamente aos diplomatas. Afinal, numa democracia, a fonte de legitimação de qualquer política pública deve ser, sempre, a sociedade.
DAWISSON BELÉM LOPES é professor de Política Internacional e Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais, autor de "Política Externa e Democracia no Brasil" (Ed. Unesp, 2013).
LUCAS PEREIRA REZENDE é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina, autor de "O Engajamento do Brasil nas Operações de Paz da ONU" (Ed. Appris, 2012).
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