Rumor sobre morte de vacas acirra divisão entre hindus e muçulmanos
Incentivado por rumores, um grupo de ativistas caça matadores em vilarejos aninhados entre campos de trigo.
Os ativistas ouviram dizer que os caçadores estão arrebanhando suas presas aos milhares às margens de lagoas e estradas.
Com bastões de ferro aquecidos, eles as empurram para dentro de veículos roubados, comenta-se, e as abatem.
As vítimas desses ataques são vacas, profundamente reverenciadas por muitos hindus, e os responsáveis pelos supostos ataques são sobretudo muçulmanos. Com isso, a questão das vacas torna-se motivo de tensões entre os maiores grupos religiosos da Índia, na véspera de eleições estaduais.
O ativismo em proteção às vacas é uma tradição secular na Índia. A maioria dos Estados proíbe o abate de vacas. No século 16, os imperadores mogóis muçulmanos promulgaram leis de proteção às vacas, para promover a harmonia religiosa.
No período colonial os combatentes pela liberdade da Índia assumiram a bandeira da proteção às vacas, em parte para rebelar-se contra seus governantes coloniais, comedores de carne bovina.
Mas durante a campanha para as eleições -que terão lugar em Haryana e Maharashtra na quarta-feira–, a luta para proteger as vacas e os rumores sobre supostos maus-tratos a elas vêm se intensificando.
Não existem estimativas confiáveis quanto à matança de vacas, de modo que é difícil avaliar se ela vem crescendo, o que dirá determinar a religião dos responsáveis.
Mas esse fato não desanimou os partidos políticos de direita, que exacerbam os ânimos de suas bases, exigindo maior implementação das leis contra a matança de vacas.
Alguns dizem que ativistas locais estão colaborando com esses partidos, explorando as divisões religiosas para ter ganhos eleitorais.
Alguns analistas na Índia temem que a chegada ao poder de Narendra Modi, herói da direita hindu, tenha levado conservadores religiosos a se sentirem autorizados a embarcar em campanhas às vezes violentas contra muçulmanos, apesar de o próprio Modi estar mantendo distância de questões religiosas.
No Estado de Haryana, no norte da Índia, um desses conservadores é Mahinder Pal Singh, que mantém um abrigo para vacas.
Singh disse que mobiliza sua rede de jovens até se ouve falar de um muçulmano andando de carro tarde da noite, se suspeitar que o veículo contenha vacas.
O trabalho pode ser letal: um dos homens que coopera com ele foi morto numa operação noturna, seis meses atrás.
"Vamos pegar essa gente, mesmo que nossos homens sejam mortos", falou Singh ao lado das manjedouras do abrigo, onde dezenas de vacas se alimentavam e o ar recendia a esterco.
Não é de hoje que os partidos políticos usam questões religiosas para incentivar os eleitores a irem às urnas. Antes das eleições em Uttar Pradesh, este ano, líderes do partido Bharatiya Janata (BJP) criticaram a frequentemente citada mas nunca comprovada prática da "jihad de amor", em que homens muçulmanos supostamente seduzem mulheres hindus.
A narrativa é vista amplamente como tentativa de polarizar os eleitores.
Uma das mais divulgadas acusações de jihad do amor foi desmentida esta semana, quando uma mulher veio a público para dizer que fugiu de vontade própria com seu namorado muçulmano e que seus pais a pressionaram a fazer uma falsa denúncia de estupro coletivo e conversão forçada.
A agitação em torno dos boatos sobre matança de vacas ainda não alcançou esse ponto febril. Na sede do BJP em Mewat, em Nuh, a capital do distrito, um candidato local, Sanjay Singh, estava incomodado com o fato de as vacas serem abertamente vinculadas a promessas de campanha.
"Trata-se de uma questão emocional, não de uma questão eleitoral", falou Singh, sentado diante de um cartaz de campanha com uma imagem ampliada do rosto do primeiro-ministro Modi. "É um problema religioso para toda a sociedade hindu."
Muitos muçulmanos em Mewat dizem que os casos que chegam aos tribunais parecem ser suspeitos. Eles observam que a força policial de Mewat é dominada por hindus.
O agricultor Hafiz Mohammad Hanif, 47 anos, opinou que o BJP está apenas provocando boatos sobre matanças de vacas, para fins eleitorais.
"Cada vez que uma vaca é morta, é um hindu quem o faz", ele disse. "Eles matam vacas e jogam partes dos corpos em nossas terras, para nos denegrir."
De acordo com Hanif, os abrigos de vacas são negócios comerciais, e os chamados protetores de vacas arrebanham animais que vagam à-toa e os vendem com lucro. "Se o preço fosse suficientemente bom, venderiam vacas até para mim."
Mahinder Pal Singh, que dirige o abrigo de vacas, diz que a população hindu na região diminuiu muito nos últimos anos. Para ele, isso faz parte de um complô muçulmano. Ele acha que o contrabando de vacas e as conversões religiosas têm por objetivo enfraquecer os hindus na região.
"Querem criar um Estado onde os terroristas possam vir para encontrar refúgio", disse Singh.
Ele se mostrou mais animado quando falou da reverência que sente pelas vacas, cujo leite, afirma, pode curar a Aids e o câncer.
Singh disse que a ex-primeira-ministra Indira Gandhi deu 15 vacas indianas à União Soviética enquanto esteve no poder e que as bactérias do leite das vacas ajudaram a proteger alguns moradores de Chernobyl dos efeitos do desastre nuclear na cidade.
"Consideramos as vacas mais meritórias que nossas próprias mães", ele concluiu.
Tradução de CLARA ALLAIN
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