No poder, xiitas do Iraque peregrinam sob proteção policial
Há mais de uma década, nos anos de ditadura de Saddam Hussein (1979-2003), Hamid Sharhan, 55, costumava se disfarçar uma vez ao ano para andar escondido, entre fazendas e florestas de palmeiras, de Bagdá a Karbala.
O trajeto, sagrado para o ramo xiita do islã, era então proibido –mas o fervor o empurrava adiante, apesar do risco de prisão e tortura.
O cenário, hoje, é outro na estrada entre as duas cidades: findo o regime sunita de Hussein, os governos xiitas de Nuri al-Maliki (2006-2014) e seu atual sucessor, Haider al-Abadi, tomaram o ritual sob sua proteção, no que se tornou uma peregrinação oficial em massa, uma das maiores do mundo.
A reportagem da Folha percorreu 7,4 km a pé na região de Dora, em Bagdá, acompanhando os andarilhos –da capital iraquiana a Karbala são 100 km. Foi ali que se encontrou com Sharhan, que o convidou para se sentar dentro de uma tenda de descanso e ouvir a história do trajeto a Karbala.
"Fazemos isso por amor a Hussein", diz o peregrino, diante dos anciãos que o acompanham. "Vamos fazer o que for preciso por Hussein. É a porta da salvação."
A caminhada de Arbain é feita 40 dias após a data de Ashura, daí o nome –Arbain, em árabe, significa "quarenta". Ambos os eventos marcam, para xiitas, o martírio de Hussein em Karbala.
Hussein era filho de Ali e, assim, neto do profeta Maomé. Ao se recusar a servir ao califa Yazid, ele foi morto em 680 d.C ao lado de sua família e de seus seguidores.
A batalha é um dos principais divisores no islã. Xiitas esperavam que os descendentes de Maomé liderassem a comunidade, no que foram derrotados pelos sunitas. Hussein e seu irmão, Hassan, são símbolos dessa luta. "Saddam, que proibia a peregrinação, seguia o caminho de Yazid", diz Muslim Hussein, comparando o ex-ditador ao califa do século 7.
Essa é uma batalha atual, em um Iraque marcado pela violência sectária, e peregrinos xiitas correm o risco de ser alvo de atentados organizados por extremistas sunitas. Daí a proteção ostensiva do governo durante o Arbain, com vias bloqueadas e controles militares no trecho.
Mas Sharhan diz não temer. "Não tenho medo. Queremos morrer para sermos considerados mártires", diz. Daí a sua vestimenta ornamentada, com panos delicados cobrindo a cabeça. "Se eu morrer na estrada, quero ter uma boa aparência."
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