Médico do ebola planeja voltar à África
A ficha médica de um caso de ebola era uma leitura sombria, mas o doutor Ian Crozier, 44, não conseguia deixá-la de lado.
Dias depois do primeiro sintoma, uma dor de cabeça, o paciente estava lutando pela vida: sofreu delírios, seus batimentos cardíacos se tornaram irregulares, seu sangue estava repleto do vírus e seus rins começaram a falhar.
"É uma ficha terrível", disse Crozier. E o paciente era ele próprio.
Crozier contraiu a doença em Serra Leoa, onde tratava pacientes de ebola no hospital do governo em Kenema.
Ele foi transportado ao Hospital da Universidade Emory, em Atlanta (Geórgia), em 9 de setembro. Foi o terceiro norte-americano vítima de ebola a ser repatriado da África Ocidental.
Crozier passou muito tempo gravemente doente, com 40 dias de internação e momentos sombrios, nos quais os médicos e parentes imaginavam que pudesse vir a ter danos cerebrais ou morrer.
Sua identidade foi mantida em segredo a seu pedido, para proteger a privacidade de sua família.
PRIMEIRA VEZ
Agora ele está se pronunciando pela primeira vez.
O motivo, diz ele, é agradecer o hospital pelo tratamento extraordinário que recebeu e chamar a atenção para a epidemia continuada.
Crozier e sua família concederam suas primeiras entrevistas ao "New York Times" e deram autorização para que falássemos com seus médicos sobre o caso.
Seu relato oferece um vislumbre das dificuldades e perigos enfrentados pelos médicos e enfermeiros voluntários no combate a uma epidemia que já custou a vida de mais de 330 profissionais de saúde –a maioria africanos– e da desesperada necessidade que levou esse pessoal à linha de frente.
Crozier contou sobre três irmãos, de 4, 5 e 11 anos, que estavam lutando pela vida na enfermaria em que ele trabalhou em Kenema. Não muito tempo depois, ele mesmo estava à beira da morte, e sua mãe, do lado de fora da sala de isolamento, lia poemas para ele pelo intercomunicador.
Homem cordial e de fala mansa, Crozier está se recuperando em Phoenix (Arizona), onde vivem seus pais e sua irmã. Mas a doença teve seu custo.
Ele tem 1,96 metro de altura e pesava 100 quilos antes do ebola, mas perdeu 14 quilos, a maioria dos quais em musculatura. Cansa-se facilmente, e começou um programa intenso de fisioterapia para reconstruir a musculatura.
"Ian foi, de longe, o paciente mais afetado pelo ebola que tratamos no Emory", disse Jay Varkey, especialista em doenças infecciosas.
Os médicos dizem que a recuperação de Crozier lhes ensinou que tratamentos agressivos, e até mesmo medidas de preservação da vida, como o uso de pulmões artificiais e máquinas de hemodiálise, podem salvar alguns pacientes de ebola. O doutor Bruce Ribner, que comanda a equipe de combate ao ebola no hospital, disse que até recentemente a prática geral envolvia não fazer diálise em pacientes de ebola, porque, se eles estivessem doentes a ponto de precisar disso, inevitavelmente morreriam.
"Acredito que o caso tenha servido para enviar uma mensagem a nossos colegas em todo o mundo."
SEM PERDER O TREM
Crozier nasceu em Bulawayo, Rodésia (hoje Zimbábue), mas sua família se transferiu aos EUA quando ele tinha 10 anos. Ele naturalizou-se e estudou medicina na Universidade Vanderbilt.
Crozier sempre se sentiu atraído pela África. Estava vivendo em Uganda, tratando pacientes infectados pelo HIV e treinando médicos no Instituto de Doenças Infecciosas de Campala, quando irrompeu o ebola na África Ocidental. Ele quis ajudar.
"Quem quer que estivesse trabalhando na África, mas não no oeste africano, imediatamente começou a pensar que tinha perdido o trem."
Crozier espera retornar para a África Ocidental em fevereiro ou março para tratar mais pacientes do ebola.
Acredita-se que os sobreviventes sejam imunes à variedade do vírus que os infectou, e por isso ele imagina que estará protegido.
"Ainda há muito a fazer", afirma o médico.
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