Opinião: Sequestro coloca em questão ampliação de segurança da Austrália
O comando de contraterrorismo e segurança de Nova Gales do Sul tomou conta do centro de Sydney nesta segunda-feira (15), esvaziando edifícios comerciais e fechando ruas no centro da cidade mais movimentada da Austrália.
Pelo menos um homem armado fez reféns no café Lindt. Ainda não se conhece o número exato de reféns, avaliado em entre 13 e 30. Uma bandeira negra da shahada foi erguida na janela do café da chocolataria suíça.
O ruído de fundo de nossos políticos está sendo baixo, algo pouco característico deles.
Três meses atrás, vale recordar, a polícia montou uma enorme demonstração de força na zona oeste de Sydney e em partes de Brisbane. As operações envolveram 800 policiais, helicópteros, e foram acompanhados por um grande contingente de mídia.
Um homem, Omarjan Azari, foi acusado criminalmente de um delito ligado ao terrorismo. Foi uma exibição exagerada de poder do Estado, e seus resultados foram parcos.
Tendo ocorrido logo depois de o alerta por ameaça de terrorismo ter sido elevado para alto, do governo ter se comprometido a enviar tropas australianas para combater o EI no Iraque e do anúncio de uma nova onda de medidas punitivas de contraterrorismo, a impressão foi que a articulação se encaixou tão bem que não pôde deixar de suscitar ceticismo.
Uma coisa é certa: tem se discutido muito a possibilidade de as ações do governo terem contribuído para os problemas, além de serem uma reação a eles. Seja como for, as declarações dadas por políticos em setembro tiveram tom beligerante.
O primeiro-ministro, Tony Abbott, já tinha dado o homem acusado por culpado. Falando em Darwin ao acompanhar a partida de tropas para o Iraque, ele disse: "Quer dizer que isto não é apenas uma suspeita, é uma intenção".
Mike Baird, o premiê de Nova Gales do Sul, adotou um discurso ao estilo de George Bush. "Vamos caçar vocês e encontrá-los", ele disse.
O comissário de polícia de Nova Gales do Sul, Andrew Scipione, foi o único a tentar moderar o tom dramático. "Não precisamos acirrar esta coisa", ele disse, depois que seus agentes tinham feito exatamente isso.
De fato, as blitzes de setembro foram acompanhadas por uma sugestão não corroborada feita pela promotoria no tribunal de que um assassino isolado pretenderia perseguir um cidadão inocente em Martin Place, a principal artéria financeira de Sydney, e decapitá-lo em público.
Na época, Tony Abbott disse: "A opinião de nossas agências policiais e de segurança foi que um ataque dessa natureza poderia ocorrer em questão de dias."
Enquanto o aparato de segurança nacional era intensificado em Canberra, o então chefe da agência de espionagem australiana, David Irvine, compareceu a uma coletiva de imprensa, com ar preocupado, e disse algo que foi confirmado hoje.
"Me preocupa hoje e me preocupa há cinco anos e meio a possibilidade de apareceram 'lobos solitários' que conseguiram evitar o radar de alguma maneira."
Temos aqui o maior aparato de segurança na história da Austrália, com novos poderes servidos de bandeja pelo Parlamento e mais ainda por vir, e mesmo assim um homem pode entrar em um café e fazer uma cidade inteira de refém.
O tom dos políticos hoje foi notavelmente pessimista. O dia começou com outra prisão ligada ao terror, esta em Beecroft, um subúrbio de Sydney, e o dia está chegando ao fim com a situação no café ainda em curso. Mas não vimos a paranoia que caracterizou as operações de setembro.
"A Austrália é uma sociedade pacífica, aberta e generosa", disse Abbot, incentivando os australianos a seguirem com suas rotinas normais.
Baird falou em tom igualmente reconfortante. Perguntaram a ele se a invasão do café vai mudar o modo como as pessoas vivem cotidianamente em Sydney.
"Não vai mudar e não deve mudar. Temos enorme orgulho desta cidade. Nossos valores são importantíssimos para nós, e vamos continuar a protegê-los em cada momento", falou o premiê de Nova Gales do Sul.
Mais tarde ele tuitou que valoriza o apoio de lideranças islâmicas e que "garantiu a elas que estamos nisto juntos". O Grão Mufti da Austrália, Ibrahim Abu Mohammad, disse em comunicado à imprensa que "o islã rejeita ações como esta em parte e no todo".
Não foi exatamente a mensagem que o tabloide de Sydney "Daily Telegraph", pertencente a Rupert Murdoch, queria vender. Uma edição vespertina especial do jornal fez o possível para assustar seus leitores suscetíveis, com a manchete em letras garrafais "Ataque de Seita da Morte no Centro do Distrito Financeiro –o momento em que mudamos para sempre". A linha fina dizia: "EI faz 13 reféns em ataque a café da cidade".
"Seita da Morte" tem sido uma das frases de tipo beligerante mais usadas por Tony Abbott para angariar apoio a seus esforços.
Ninguém até agora sabe se a tomada dos reféns no café é ou não obra de um seguidor do Estado Islâmico. A bandeira exibida não é a do EI. Não, a Austrália não mudou para sempre.
A escassez de informações concretas está sendo preenchida por reapresentação de informações velhas e declarações de preconceito pronto. Mas a mídia, de maneira geral, está atendendo ao pedido da polícia de não divulgar as exigências do homem armado.
De repente a atuação desastrada de Tony Abbott e seus resultados lamentáveis em pesquisas de opinião deixaram de ser manchetes.
Após evasivas iniciais, o tão temido anúncio das perspectivas econômicas e fiscais da metade do ano, confirmando o pior sobre o orçamento do governo, desapareceu das manchetes, sem alarde.
O que já sabemos é que, depois de alguns meses tensos e muitos debates, a forma do crescente Estado de segurança australiano ainda está em questão. E muita coisa vai depender dos infelizes que ainda são reféns num café em Martin Place.
Tradução de CLARA ALLAIN
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