Opinião: Rei Abdullah personificava crueldade do regime saudita
É sempre possível contemplar a morte do rei Abdullah, da Arábia Saudita, e a ascensão ao trono do príncipe Salman, pelo lado positivo. Ela demonstra que, se as informações quanto à saúde precária do príncipe herdeiro procedem, a demência não impede uma pessoa de atingir os mais altos postos - desde que ela tenha os pais certos.
Para muitos sistemas políticos, ter um homem cujas faculdades já não estão à altura da tarefa no comando do governo é um perigo conhecido -basta lembrar do Papa João Paulo 2º. Mas a Arábia Saudita é única no mundo moderno por escolher como líder um homem visto como em declínio já antes de chegar ao poder.
E o absurdo só aumenta se considerarmos que o reino é cruel em si, e uma fonte de crueldade e corrupção para o resto do mundo. A Arábia Saudita pratica tortura e assassinatos judiciais arbitrários.
Mulheres são decapitadas nas ruas, e pensamentos liberais são passíveis de punição com chibatadas, o que pode representar uma morte ainda mais horrenda, já que o processo é bem mais longo do que o de ter a cabeça decepada por uma espada.
A Arábia Saudita é uma jangada de medo e ódio entrelaçados, flutuando sobre quantias inimagináveis de dinheiro, pelo menos para as minorias afortunadas. Entre os pobres, nem todos os quais são escravos ou estrangeiros, há o "tufshan", palavra especial que um antropólogo definiu como "um torpor sutil e incapacitante".
A influência saudita no mundo externo é quase totalmente maligna. Os jovens que o país enviou ao Afeganistão para combater se transformaram na Al Qaeda. Os jihadistas sunitas que os sauditas bancaram no Iraque e Síria se transformaram no Estado Islâmico.
O país espalha sua venenosa forma de islamismo pela Europa por meio de subsídios, e corrompe políticos e empresários ocidentais com sua cultura do suborno. Os sauditas sempre apelaram às piores formas do imperialismo ocidental: seu desdém pelos demais muçulmanos é quase tão grande quanto o de qualquer nacionalista norte-americano.
Mas é difícil imaginar que reformas melhorariam o país. O exemplo da União Soviética demonstra o quanto o colapso de uma autocracia totalitária pode ser caótico e apavorante. Ainda que os sauditas ainda possam contar com o Islã caso seu Estado desabe -os soviéticos perderam sua ideologia assim como seu império–, a interpretação estreita e puritana do islamismo que eles adotam dificilmente conduziria à paz.
Além disso, eles enfrentam inimigos xiitas em um arco que se estende da Síria, ao norte, passando pelo Iraque e Irã e chegando ao Iêmen, no sul, onde a insurgência vem ganhando espaço firmemente; e existe uma minoria xiita, impiedosamente reprimida, na própria Arábia Saudita.
Todas essas ameaças devem reforçar o aparato de repressão e a crença dos governantes em que, caso percam seu domínio, cairão e terminarão pisoteados. E é bem possível que tenham razão. Seria necessário um líder verdadeiramente sábio e experiente para navegar as águas complicadas que existem à frente.
Os tributos servis prestados por políticos ocidentais ao rei morto descrevem o monarca saudita imaginário de que precisamos, não aquele que tínhamos ou provavelmente viremos a ter.
ANDREW BROWN é jornalista especialista em religião do "Guardian". Autor do livro "Fishing in Utopia" (ed. Granta UK), ganhador do Prêmio Orwell em 2009.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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