México vive vendaval autoritário, afirma jornalista demitida
Na mesma semana em que a organização Article 19, baseada em Londres, divulgou informe relatando que, no México, um repórter é ameaçado ou atacado a cada dia, Carmen Aristegui, 51, a jornalista mais importante do país, foi demitida da emissora de rádio MVS _parte de um conglomerado de mídia que possui ainda TV a cabo, provedor de internet e veículos impressos.
"Não tenho dúvidas de que houve pressão do governo e de que a razão foi o fato de termos divulgado o caso da 'Casa Branca'. A emissora ficou também com nossos computadores e arquivos relacionados a essa e outras investigações", disse Aristegui em entrevista à Folha, por telefone.
Com sua equipe de 17 jornalistas, todos também demitidos agora, Aristegui trouxera à tona a revelação de que a primeira-dama do país, a atriz de novelas Angélica Rivera, havia recebido uma mansão de US$ 7 milhões de Juan Armando Hinojosa, um empresário favorecido em várias licitações do governo.
Alex Cruz/Efe | ||
Na Cidade do México, apoiadores da jornalista Carmen Aristegui fazem protesto contra sua demissão |
O escândalo ajudou a dinamitar a popularidade do presidente Enrique Peña Nieto, que já vinha em queda desde a desaparição de 43 estudantes no Estado de Guerrero, em setembro do ano passado, em ação aparentemente comandada por autoridades locais e narcotraficantes.
Segundo pesquisa divulgada na semana passada pelo jornal "Reforma", a desaprovação à gestão de Peña Nieto é de 57% da população.
"Ele está contra as cordas. Não tem mais o apoio que havia alcançado no Congresso com o Pacto pelo México [aliança de partidos de oposição que permitiu aprovar projetos como a reforma energética], perdeu o respaldo popular e mostrou-se sem controle diante das autoridades regionais associadas aos cartéis. Também não tem quem o apoie no exterior", afirmou Aristegui.
SOB PRESSÃO
Para a jornalista –que comanda também o principal "talk show" da CNN em Español, ganhou prêmios de prestígio (Moors Cabot e PEN, entre outros) e possui mais de 3 milhões de seguidores no Twitter–, se ela está sendo alvo de pressão, é porque todos os jornalistas do país estão muito vulneráveis.
"Estamos vivendo um vendaval autoritário que tem como principal alvo a liberdade de expressão. Houve uma regressão com relação a várias conquistas. Quando o escritor peruano Mario Vargas Llosa disse que o PRI (Partido Revolucionário Institucional) era a 'ditadura perfeita', nos anos 90, soava exagerado. Agora é uma realidade", diz.
O escritor Juan Villoro, intelectual mexicano mais respeitado no país hoje, acrescenta: "A demissão de Aristegui mostra a política de encerramento do governo que, diante dos protestos nas ruas, decidiu blindar-se."
Mesmo vozes críticas à jornalista saíram em sua defesa. O analista político Alejandro Hope afirmou: "Eu não escutava seu programa e seu estilo me irritava, mas sua voz não podia ter sido silenciada. O México não pode atravessar esse momento sem pluralidade".
Os números divulgados pela Article 19 não são isolados. Segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas, baseado em Nova York, houve 656 avanços contra profissionais de imprensa no país nos últimos dois anos. Em 2014, foram 142 ataques físicos, 53 intimidações e 45 detenções arbitrárias, com seis mortes.
Já a World Association of Newspapers and News Publishers declarou que "a censura leve se transformou em parte integral da complicada paisagem da mídia mexicana".
O Article 19 acrescenta que, no interior, forças do Estado (Exército e polícia) já são responsáveis por mais ataques a jornalistas do que o crime organizado. Um exemplo é o caso do assassinato do jornalista Moisés Sanchez, no Estado de Veracruz, em janeiro, pelo qual estão sendo investigados policiais e o governador Javier Duarte de Sánchez.
"Depois de Ayotzinapa, o mundo passou a olhar para cá com mais atenção, portanto o governo tem ainda mais necessidade de controlar o que é noticiado", diz Aristegui.
Nos dias seguintes à demissão da equipe, a sede da MVS foi palco de protestos, nos quais as pessoas exibiam faixas com os dizeres "Yo Soy Aristegui" e "#aristeguinosecala".
MÉXICOLEAKS
A emissora afirma que não há ligação entre a reportagem sobre a "Casa Branca" e a demissão e a justifica dizendo que Aristegui usava seu espaço para divulgar propaganda do site Méxicoleaks.
Formada por oito veículos, o site recém-lançado permite que denúncias anônimas sejam enviadas aos jornalistas.
"Acreditamos que é uma maneira de investigarmos o que acontece nas estruturas corrompidas dos governos regionais, uma vez que os jornalistas do interior estão sendo calados ou se autocensurando
por medo", diz à Folha Dulce Ramos, editora do site "Animal Político", formado há cinco anos por ex-jornalistas de grandes veículos e que possui 3 milhões de visitantes diários.
Além do "Animal Político", integram o projeto as revistas "Proceso", mais prestigiada em noticiário político e com tiragem de 150 mil exemplares (6 milhões de visitantes no site), e a cultural "Emeequis", além de coletivos virtuais.
Para o ex-editor da revista "Gatopardo", Guillermo Osorno, o Méxicoleaks é uma boa notícia, mas ele alerta para a importância que a TV aberta e o rádio ainda possuem. "A internet está crescendo, mas se concentra nas grandes cidades e na classe média."
No México, apenas 38% da população está conectada, enquanto 97% consomem TV aberta, 81% se informam pelas rádios e 27% pelos jornais impressos.
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