ANÁLISE
Aval a casamento gay nos EUA resulta de luta popular e cultural
"Acho que o seriado 'Will & Grace' fez mais do que ninguém para educar o público americano [sobre os gays]", disse o vice-presidente Joe Biden, o primeiro do alto escalão da Casa Branca a apoiar o casamento gay, em 2012.
Dias depois, em plena campanha de reeleição, Obama faria o mesmo.
O casamento gay, aprovado hoje pela Suprema Corte, foi conquistado em parte por uma luta de 50 anos da militância da sociedade civil, pelo engajamento da cultura popular e televisiva e pela entrada do dinheiro pesado da iniciativa privada mais liberal e influente das grandes cidades e das duas costas do país.
Judiciário e Executivo vieram a reboque. O Legislativo americano se ausentou desse debate.
Obama homenageou os "heróis anônimos.
A cultura pop do país, de seriados como "Will & Grace", "Glee" e "Modern Family", e seus diversos astros e estrelas fora do armário conseguiram reverter um clima de caça aos gays que predominou entre os anos 1980 até meados dos 2000.
Em 2004, para reeleger George W. Bush, seu marqueteiro teve a ideia de promover a convocação de plebiscitos em Estados governados por republicanos para proibir o casamento gay (e assim tirar o eleitor conservador de casa e fazê-lo votar).
Em 11 plebiscitos, a união homossexual foi rejeitada em todos. Bush se reelegeu. Nesse mesmo ano, o Estado de Massachusetts foi o primeiro a aprovar o casamento gay.
BOMBAS E CASSETES
A luta por direitos iguais começou com bomba e cassetete na madrugada de 28 de junho de 1969, quando um grupo de frequentadores do bar Stonewall Inn, no Village nova-iorquino, decidiu reagir às humilhações das repetidas batidas policiais, nas quais muitas pessoas eram presas apenas por estarem ali ou por estarem vestidas como drag queens.
Gays, lésbicas, travestis e transgêneros que ali se encontravam reagiram aos tapas dos policiais com outros tapas, que evoluíram para pontapés, pedradas e viaturas queimadas ao ar livre, espaço público onde os gays jamais se aventuravam.
As primeiras paradas do orgulho gay comemoravam essa data de junho, o dia em que o movimento saiu à luz.
Era apenas o começo.
Editoria de Arte/Folhapress | ||
Nos anos 80, o presidente Ronald Reagan levou sete anos para falar (ou agir) sobre a epidemia de Aids, porque muitos conservadores achavam que era uma "praga gay".
Com seu descaso (e dezenas de milhares de mortos depois), ele acabou provocando o surgimento de algumas das organizações gays mais combativas do país, como "a Act Up", história contada no documentário "Como Sobreviver a uma Praga", indicado ao Oscar.
Nos anos 90, até o democrata Bill Clinton, em nome da governabilidade, assinou as leis que permitiam gays nas Forças Armadas, mas desde que continuassem no armário ("Don't ask, don' tell', ou "não pergunte, não conte"), e a Lei da Defesa do Casamento, que só permitia o casamento entre um homem e uma mulher.
A reação não demorou. A famosa comediante Ellen De Generes declarou sua homossexualidade na capa da revista "Time" em 1997.
Por vários anos, é a apresentadora de maior audiência vespertina na TV americana.
Diversos atores, cantores, políticos e apresentadores de telejornais foram saindo do armário e familiarizando o público americano com o fato de que os gays eram seus vizinhos, amigos e parentes e que mereciam ter direitos iguais.
Artistas heterossexuais com grande público gay, de Madonna e Lady Gaga ao casal Brad Pitt e Angelina Jolie, viraram porta-vozes dessa contraofensiva.
O casamento era apenas o emblema favorito pela aceitação de um público historicamente discriminado.
Depois do mundo cultural, o mundo empresarial seguiu a onda.
Durante a campanha "It gets better" ("vai melhorar"), lançada em 2010 para evitar suicídios de adolescentes gays, grandes empresas americanas convocaram seus funcionários gays para compartilhar suas histórias de sofrimento e superação –algumas viraram vídeos visualizados milhões de vezes na internet.
No ano passado, Tim Cook, o presidente da Apple, a empresa mais valorizada do país, declarou que é gay.
O mundo político veio a reboque.
Hillary Clinton só declarou seu apoio ao casamento gay em 2013, apesar de ter indicado embaixadores gays quando secretária de Estado e pedido a embaixadas americanas na África que promovessem eventos pró-direitos de LGBT.
Nenhum dos atuais 13 candidatos declarados do oposicionista Partido Republicano à sucessão de Barack Obama jamais manifestou apoio à causa.
Alguns ainda atacam a decisão do Supremo, que ficou quase rachado (decisão tomada por 5 votos a 4). Mas quase 60% dos americanos apoiam o casamento gay –75% entre os eleitores de 18 a 30 anos.
A demografia indica que era hora de essa decisão sair.
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