Japoneses narram ataques nucleares para deixar memória como herança
Em um final de semana recente, um sobrevivente do bombardeio atômico contra Nagasaki traçou no mapa o caminho que ele percorreu: os 20 quilômetros de inferno em sua caminhada de volta para casa, a "chuva negra" de partículas radioativas se precipitando para a terra, e como ele começou a se sentir doente, dias mais tarde.
A audiência de oito pessoas o ouvia com atenção, fazendo perguntas e anotações quando necessário. A esperança deles é transmitir essa história a futuras gerações quando ele tiver partido e conduzir os ouvintes à cena que Shigeyuki Katsura, 84, viu e sentiu em 9 de agosto de 1945.
Em um programa organizado pelo governo do subúrbio de Kunitachi, a oeste de Tóquio, 20 alunos com idades entre os 20 e os 70 anos estão estudando a história da época da guerra, recebendo aulas de como falar em público do âncora de um telejornal e ouvindo as histórias de Katsura e de outros moradores de Kunitachi, que sobreviveram ao bombardeio de Hiroshima.
"Faz 70 anos que os bombardeios aconteceram, e os sobreviventes estão envelhecendo. O tempo é limitado e precisamos nos apressar", disse Terumi Tanaka, 83, o presidente de um grupo nacional sediado em Tóquio e chamado Confederação Japonesa das Vítimas das Bombas A e H.
De certa forma, eles estão recuando ao passado, em plena era digital, aprendendo em contato direto com os anciãos a fim de preservar uma tradição de narrativa oral. Não é muito diferente dos atores do teatro kabuki, que herdam os pseudônimos de palco de seus predecessores e interpretam as peças que os tornaram famosos.
As mesmas histórias podem ser narradas em texto e vídeo na internet, mas os organizadores sentem que ouvir alguém contar a história pessoalmente adiciona um inestimável toque humano ao processo.
A bomba atômica lançada sobre Hiroshima em 6 de agosto de 1945 matou cerca de 140 mil pessoas em cinco meses, tanto como resultado da explosão quanto pelos efeitos imediatos da radiação, e uma segunda bomba lançada sobre Nagasaki três dias mais tarde causou 73 mil mortes.
O total de mortes associadas aos ataques e aos efeitos da radiação subiu, desde então, a 460 mil, e o número de sobreviventes caiu para 183 mil, de acordo com as mais recentes estatísticas do governo japonês.
A maioria dos sobreviventes vive em Hiroshima e Nagasaki. Katsura disse que cerca de 20 sobreviventes vivem em Kunitachi, mas apenas alguns poucos deles, entre os quais ele se inclui, estão suficientemente bem de saúde para fazer aparições públicas.
Tanaka, um professor aposentado de engenharia, sobreviveu ao bombardeio de Nagasaki, mas perdeu cinco parentes na cidade, quando tinha 13 anos.
Ele diz que seria quase impossível para um narrador descrever os horrores daquele dia tão vividamente quanto um sobrevivente, mas espera que a imaginação, compaixão e compromisso com a paz que eles demonstram compensem quaisquer deficiências.
Mika Shimizu, 32, professora de segundo grau, espera ser capaz disso, ao expressar a experiência de um sobrevivente em linguagem que ela, seus colegas e pessoas mais jovens, como seus alunos, consigam compreender.
"Mesmo que ouçamos a mesma história, a maneira pela qual cada um de nós a contará será diferente, porque todos temos sensibilidades diferentes", disse.
Sachiko Matsushita, outra alunas, perdeu a chance de aprender diretamente sobre o acontecido com seu pai, que escondeu o fato de estar entre as vítimas do bombardeio a Nagasaki por quase toda a vida, e em geral preferia não contar sua história.
Inicialmente, ela queria percorrer o mesmo caminho que seu pai percorreu, mas agora está determinada a passar adiante a história de Katsura.
"Eu prefiro ouvir as histórias diretamente das pessoas, e repassá-las a outros", diz Matsushita, 47, funcionária de uma companhia.
Katsura tinha 14 anos quando ele e os colegas de escola, que trabalhavam como parte do esforço de guerra, foram encarregados de levar um carrinho repleto de peças para a fabricação de armas a uma fábrica, no momento em que a bomba de plutônio conhecida como "Fat Man" foi detonada sobre Nagasaki.
"Tendo testemunhado o que uma arma nuclear produzida pelo homem pode fazer aos seres humanos, é preciso que eu as condene como completamente erradas, como um equívoco que jamais deve ser repetido", disse.
"É isso que e me leva a contar minha história, e continuarei a fazê-lo enquanto viver."
O curso em Kunitachi se inspira em um projeto semelhante iniciado em Hiroshima em 2012. O primeiro grupo de 50 narradores de Hiroshima estreou este ano, e outros 150 estão sendo treinados.
Mamiko Ogawa, funcionária da prefeitura de Kunitachi, diz que contar essa história requer profunda compreensão do retrospecto histórico e das emoções dos sobreviventes, bem como uma gotinha de personalidade por parte do narrador. É isso que torna a experiência diferente de um arquivo digital.
"Creio que as histórias sejam melhores quando contadas por pessoas reais", diz. "Espero que os alunos absorvam suficientemente as experiências e sentimentos dos sobreviventes, para que possam contar as histórias de acordo com a sua sensibilidade."
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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