Atormentado por suicídios, grupo de marines dos EUA tenta se salvar
Após o sexto suicídio em seu antigo batalhão, Manny Bojorquez afundou na cama. Com uma garrafa semivazia de Jim Beam ao seu lado e uma pistola na mão, começou a chorar.
Ele havia ido ao Afeganistão aos 19 anos como metralhador no Corpo de Fuzileiros Navais. Nos 18 meses que se passaram desde que deixou as Forças Armadas, tinha deixado o cabelo crescer e também adquiriu um espesso bigode.
Era 2012. Ele estava trabalhando, em regime de meio período, em uma loja que vendia bonés de beisebol e frequentava a faculdade comunitária, enquanto vivia com seus pais no subúrbio de Phoenix. Raramente mencionava a guerra a seus amigos ou para a família, e nunca falou dos seus pesadelos.
Suicídios de ex-combatentes do Afeganistão
Ele pensou que estava se acostumando com os suicídios na sua antiga unidade de infantaria, mas o último deles o atingiu como um raio: o do cabo Joshua Markel, um mentor da sua equipe de fogo que parecia inabalável. No Afeganistão, Markel se ofereceu para patrulhas extras e fazia brincadeiras durante tiroteios.
De volta para casa, Markel parecia sólido: tinha um trabalho na delegacia, um caminhão novo, uma esposa e tempo para caçar cervos com seu pai. Mas naquela semana, enquanto via futebol na TV com os amigos, saiu para seu quarto sem dizer uma palavra, pegou uma pistola e se matou. Tinha 25 anos.
Ainda se recuperando da notícia, Bojorquez percorreu com os olhos o seu quarto de infância e o traje de combate desbotado pelo sol, pendurado na cabeceira. Então tomou um longo gole da garrafa.
"Se ele não conseguiu", lembra de haver pensado consigo mesmo, "que chances eu tenho?". Apertou a pistola carregada em direção da testa e puxou o gatilho.
Bojorquez, 27, serviu em uma das unidades militares mais atingidas no Afeganistão, o Segundo Batalhão, Sétimo Regimento dos Fuzileiros Navais.
Em 2008, a 2/7 foi colocada em uma faixa selvagem da província de Helmand. Muito além das linhas de abastecimento confiáveis, o batalhão frequentemente ficava sem água e munição enquanto era atacado quase diariamente. Durante oito meses de combate, a unidade matou centenas de combatentes inimigos e sofreu mais baixas do que qualquer outro batalhão dos "marines" naquele ano.
Quando seus integrantes voltaram para casa, a maioria deixou as Forças Armadas e se integrou à paisagem civil. Eles tinham famílias e jogavam softball, davam aulas em escolas do ensino médio e frequentavam universidades da Ivy League. Mas muitos deles também continuaram lutando, sem conseguir encontrar consolo. E para alguns as agonias da guerra nunca terminaram.
Quase sete anos depois da estada em Helmand, o suicídio está se espalhando pela antiga unidade como um vírus. Dos cerca de 1.200 fuzileiros navais destacados para a 2/7 em 2008, pelo menos 13 se mataram, dois enquanto estavam ativos e os demais depois de terem deixado as Forças Armadas.
A taxa de suicídio desse grupo é quase quatro vezes maior do que a taxa de jovens veteranos do sexo masculino como um todo e 14 vezes maior do que a taxa calculada para todos os norte-americanos.
"Quando os suicídios começaram, tive raiva", disse Matt Havniear, ex-cabo que carregava um lançador de foguetes na guerra, em uma entrevista por telefone do Oregon. "Quando chegaram os outros, me senti apenas confuso e triste. Depois, por volta do 10º, comecei a sentir como se fosse inevitável –que vai nos atingir a todos e que não há nada que possamos fazer para deter isso."
Durante anos, líderes nos mais altos níveis do governo reconheceram a alta taxa de suicídio entre os veteranos e fizeram grandes investimentos para tentar reduzi-la. Mas os suicídios continuaram, e perguntas básicas sobre quem está mais em risco e qual a melhor forma de ajudá-los ainda estão, em grande parte, sem resposta.
As autoridades não estão nem mesmo cientes do aumento dos suicídios na 2/7; os especialistas em suicídio do Departamento de Assuntos de Veteranos disseram não acompanhar as tendências de suicídio entre os veteranos de unidades militares específicas. E o Corpo de Fuzileiros Navais não acompanha os suicídios de ex-membros do serviço.
Na manhã seguinte à que Manny Bojorquez tentou se matar em 2012, ele abriu os olhos por conta da luz do sol que entrava pela sua janela e encontrou a arma carregada no chão. No meio da dor de cabeça derivada do uísque, conseguiu entender que sua arma havia travado e que havia desmaiado por conta da bebedeira.
Uma semana depois, ele estava ao lado de mais de uma dúzia de outros veteranos dos Fuzileiros Navais no funeral de Markel em Lincoln, Nebraska. O barulho dos rifles ecoou nas lápides quando uma guarda de honra uniformizada disparou uma saudação ao falecido.
FALTA DE DADOS
A partir de 2005, as taxas de suicídio entre os veteranos do Iraque e do Afeganistão começaram a subir de forma acentuada, e os militares e o Departamento de Assuntos de Veteranos criaram uma série de programas para combater o problema.
Apesar de gastar centenas de milhões em pesquisa, o departamento e os militares ainda sabem pouco sobre como a experiência de combate afeta o risco de suicídio, de acordo com pesquisadores de suicídios especializados em atividades nas Forças Armadas.
Muitos estudos recentes se concentraram em investigar se destacamentos como o da 2/7 eram um fator de risco para o suicídio e chegaram à conclusão de que não eram.
Os resultados pareceram mostrar algo paradoxal: as pessoas destacadas para a guerra eram na verdade menos propensas a cometer suicídio. Mas os críticos desses estudos dizem que a maioria das pessoas enviadas a zonas de guerra não enfrentam o fogo inimigo. O risco para os verdadeiros veteranos de guerra está oculto nos resultados mais amplos e nunca foi devidamente examinado, segundo afirmam.
"Eles podem ter um risco dez vezes maior, eles podem ter um risco cem vezes maior, e nós não sabemos, porque ninguém investigou", disse Michael Schoenbaum, epidemiologista dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças.
Os primeiros suicídios atingiram os homens da 2/7 como se fossem algo aleatório. Foi só com o passar do tempo que eles começaram a ver a morte como parte da sua história de guerra –mortes em combate que aconteceram depois do conflito.
Os fuzileiros navais tendiam a considerar esses primeiros suicídios como resultados de impulsos tolos ou problemas anteriores à guerra. Então veio a morte que abalou o batalhão e levou muitos deles a perguntarem se algo estava errado –não só com os homens que se mataram, mas também com todos eles.
O cabo Clay Hunt havia sido um franco-atirador no batalhão. Depois de ter saído do Corpo de Fuzileiros Navais em 2009, depois de uma segunda participação, seu desencanto com a guerra cresceu, e ele procurou tratamento no Departamento de Assuntos de Veteranos (DAV), para combater a depressão e o transtorno de estresse pós-traumático que sofria.
Hunt se tornou um franco defensor dos jovens veteranos, ao falar abertamente dos seus problemas e fazer lobby para um melhor tratamento das temáticas dos veteranos no Capitólio. Em 2010, ele apareceu em uma campanha pública em que se pedia que os veteranos buscassem o apoio dos seus companheiros.
Ao mesmo tempo, lutava para obter tratamento adequado no DAV. Enfrentava longas demoras e terapias inconsistentes, de acordo com a sua mãe, Susan Selke, de Houston. Hunt se matou com um tiro em seu apartamento no Texas, em março de 2011. Tinha 28 anos.
LUTA CONTRA O RÓTULO
Cada vez mais, os membros do batalhão sentiam que em casa, assim como no Afeganistão, eles continuavam esquecidos. Então procuraram ajuda das pessoas com que contavam no Afeganistão: seus colegas fuzileiros.
Em novembro, Keith Branch, de Austin, Texas, um atirador de 20 anos na 2/7, postou uma mensagem no Facebook em que pedia aos outros para colocar seus endereços em uma planilha do Google. Dessa forma, se um fuzileiro naval em Montana estivesse preocupado com um amigo na Geórgia, poderia olhar a planilha e encontrar alguém por perto para ajudar.
"Todos nós estamos passando pela mesma luta", disse Branch, agora com 28 anos, em uma entrevista. "Se conseguirmos que um cara possa ter alguém com quem conversar, esperamos que isso faça toda a diferença."
A planilha é parte de uma mobilização mais ampla entre os jovens veteranos que, ao contatarem outros veteranos –seja através de voluntariado, esportes, artes ou outras experiências compartilhadas–, podem receber um remédio potente.
Menos de duas semanas depois que a planilha do Google foi criada, uma mensagem de texto apareceu no telefone de um veterano dos fuzileiros navais chamado Geoff Kamp. Foi logo depois das 23h em uma quarta-feira de novembro.
Kamp virou-se para a sua esposa e disse: "Vou ficar fora por um tempo".
Uma hora antes, um veterano dos "marines" de 27 anos, Charles Gerard, havia mudado sua foto no perfil do Facebook e colocado uma imagem de um rifle enfiado em detritos e coberto com um capacete –o símbolo de alguém morto em ação. Em um post, escreveu: "Não consigo mais continuar".
Em questão de minutos, o sistema de resposta do batalhão começou. Havniear, o ex-cabo, no Oregon, viu o post no Facebook e telefonou para um fuzileiro naval em Utah que havia sido colega de quarto de Gerard. Eles telefonaram para Gerard imediatamente, mas não tiveram resposta. Gerard estava estacionado em sua caminhonete, às margens de um lago situado fora da cidade, com um rifle de caça no colo.
Desesperados para evitar outra morte, eles abriram a planilha do Google e encontraram Kamp, a 90 minutos de distância. Em dez minutos, ele estava dentro do seu caminhão, em alta velocidade rumo ao norte. Kamp não conhecia Gerard.
À beira do lago, Gerard apoiou o rifle contra a cabeça, fechou os olhos e puxou o gatilho. Houve um clique e, depois, nada. O giro do tambor foi um fracasso.
Ele decidiu que o universo estava lhe dizendo que não era a hora de morrer. Jogou a munição restante no lago e dirigiu de volta para casa.
Poucos minutos depois, Kamp bateu na porta.
Eles conversaram no sofá a maior parte da noite, sobre relacionamentos, trabalho, hipotecas, guerra, homens que não voltaram para casa e o sentimento de frio depois do Afeganistão, de que você está sozinho, mesmo quando rodeado por outras pessoas.
"Vamos superar isso", Kamp lhe disse.
Tradução de DENISE MOTA
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