Montanha no Paquistão guarda milhares de exemplares do Alcorão
Banaras Khan - 14.jan.2016/AFP | ||
O monte Jabal-e-Noor, perto de Quetta, onde estão milhares de exemplares do Alcorão |
Uma colina desértica perto da cidade paquistanesa de Quetta esconde em suas entranhas um labirinto de túneis cheios de sacos repletos de velhos exemplares do Alcorão que vivem suas últimas horas.
A montanha de Jabal-e-Noor (Montanha da Luz) já foi visitado por centenas de milhares de pessoas desde que dois irmãos a transformaram em santuário para cópias decrépitas do livro sagrado do islã.
"Enterramos pelo menos cinco milhões de sacos cheios de velhos Alcorões", diz Haji Muzaffar Ali, o gerente do lugar, que está saturado.
Desfazer-se de um Alcorão usado é uma tarefa complicada no Paquistão, onde uma falta de respeito em relação ao livro é punível com a pena de morte, baseada em uma controversa lei sobre blasfêmia.
Banaras Khan - 14.jan.2016/AFP | ||
Muçulmano observa exemplar do Alcorão na montanha perto de Quetta |
Simples suspeitas já terminaram em linchamentos no país. Mais de 50 pessoas, em sua maioria pobres ou pertencentes a minorias, já forma mortas nos últimos 25 anos em circunstâncias deste tipo, de acordo com a organização Human Rights Watch.
Para os muçulmanos, o Alcorão contém a palavra de Deus, revelada à humanidade pelo profeta Maomé.
As palavras do livro são consideradas sagradas, o que força os fiéis a se livrarem dele com consideração.
O clero muçulmano identifica duas formas possíveis de se desfazer do livro: embrulhá-lo em um pano e enterrá-lo, como é feito em Jabal-e-Noor, ou deixar que a água apague progressivamente suas páginas.
Em Jabal-e-Noor a situação está crítica.
Sacos do texto sagrado se acumulam nos flancos da colina à espera de um lugar no santuário. O criador do local, Abdul Sammad Lehri, um empresário de 77 anos, tem uma ideia: reciclá-los.
Uma proposta revolucionária e arriscada.
Banaras Khan - 14.jan.2016/AFP | ||
A entrada para os túneis onde ficam os exemplares do Alcorão |
No vizinho Afeganistão, mil manifestantes enfurecidos destruíram parcialmente, em 2011, uma usina de reciclagem que transforma os livros em papel higiênico. Em novembro de 2015, uma multidão incendiou uma fábrica na província paquistanesa do Punjab porque acreditavam que um de seus funcionários havia queimado páginas do Alcorão em uma caldeira.
Mas alguns religiosos paquistaneses aprovam a ideia do homem de negócios.
"Não há nada de errado com o fato de uma fábrica de reciclados reutilizar as páginas do Alcorão", disse Tahir Mehmood Ashrafi, presidente dos ulemás (sábios especializados em leis e religião) do Paquistão. Mas ele diz que é preciso que isso seja feito passo a passo.
"Primeiro as palavras seriam apagadas com um líquido produzido de acordo com os ensinamentos islâmicos", diz o mufti (acadêmico encarregado de interpretar a lei islâmica) Muneeb-ur-Rehman, um influente teólogo.
Banaras Khan - 14.jan.2016/AFP | ||
Sacos repletos de exemplares do Alcorão na montanha Jabal-e-Noor |
"Então poderão ser usadas as páginas para reimpressão ou para papelão", diz.
"As usinas de reciclagem existentes no Paquistão não tratam Alcorões por causa das restrições envolvidas. Por exemplo, empregar exclusivamente muçulmanos para executar a tarefa", disse à AFP Irfan Qadir, secretário do Escritório do Alcorão no Punjab, um órgão que supervisiona a coleta e a reciclagem das páginas sagradas.
"No entanto, autorizamos uma fundação privada a reciclar páginas retiradas do Alcorão em uma escala muito pequena", ressalta.
A fundação coloca as páginas em um tambor com água até que as palavras estejam apagadas. A água é então vertida para um poço subterrâneo e a pasta de celulose é transformada em uma variedade de papelão muito maleável.
O escritório propôs a criação de uma usina de reciclagem só para o livro sagrado, mas o governo ainda não respondeu.
Em Jabal-e-Noor (que é uma referência a uma montanha na Arábia Saudita onde Deus revelou a Maomé os primeiros versos do Alcorão), a ideia é ainda muito vaga.
"Queremos construir essa fábrica e cavar mais túneis na montanha, mas não temos recursos", diz Abdul Sammad Lehri, que convida os visitantes a fazerem doações.
A vocação de Lehri para ser protetor dos Alcorões surgiu em 1956, quando ele viu em um jornal uma foto da Caaba, o edifício em forma de cubo em Meca, disse à AFP.
Banaras Khan - 14.jan.2016/AFP | ||
Cópia antiga do Alcorão em túnel na montanha Jabal-e-Noor |
Ele cortou a imagem e fez a promessa de salvar imagens e palavras piedosas.
Em 1992, ele teve a ideia de usar um lugar perto de Quetta para enterrar as páginas na montanha.
Milhares de peregrinos já visitaram o local, e alguns chegam a escrever mensagens nas paredes dos túneis.
"Oh! Deus, que eu posso me casar de acordo com a minha vontade", se lê no pedido em uma parede.
"Deus meu. Rompa o noivado de Amina e liberte-a de Hamza", diz outro.
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