Após atentado em Orlando, tática do medo retorna à política americana
Foi um dos comerciais mais viscerais e mais fortes na campanha presidencial de George W. Bush contra John Kerry, em 2004. Uma alcateia de lobos era mostrada na floresta, e um narrador acusava Kerry de restringir as atividades de coleta de informações sobre terroristas. "A fraqueza atrai aqueles que estão esperando a chance de fazer mal à América", o comercial alertava, enquanto os lobos começavam a correr na direção da câmera.
Na verdade, essa pode ser considerada uma metáfora sutil, pelo padrão de Donald Trump.
Em um discurso apocalíptico na segunda-feira, no qual alertou que o terrorismo era capaz de destruir os Estados Unidos -"não restará nada, absolutamente nada", ele disse- Trump escalou imigrantes muçulmanos para o papel da alcateia de lobos. Um único atirador executou o massacre de Orlando, ele disse. "Você consegue imaginar o que eles poderiam fazer em grandes grupos, que hoje permitimos que entrem aqui?"
A exploração do medo é parte do jogo político norte-americano desde os panfletistas da era colonial que açularam seus vizinhos contra o desgoverno britânico. E assumiu força renovada na era nuclear, com o comercial "Daisy" de Lyndon Johnson em sua campanha contra Barry Goldwater, em 1964, e com os alertas de Jimmy Carter sobre Ronald Reagan e seu dedo no botão da guerra nuclear, em 1980.
Mas Trump -que atraiu ásperas críticas do presidente Barack Obama na terça-feira (14)- intensificou o poder do medo na política presidencial ao demonizar todo um grupo religioso. E expandiu o uso desse poder ao provocar o medo logo depois de eventos traumáticos para a nação, como o homicídio em massa em San Bernardino, Califórnia, e agora o ataque em Orlando, os quais no passado costumavam atrair respostas ponderadas e tranquilizadoras.
Isso ficou para trás. A julgar por seu discurso da segunda-feira, suas declarações ao longo da campanha e por entrevistas com historiadores e psicólogos, Trump tem o compromisso de denegrir, se não soterrar, as respostas condicionadas que por muito tempo serviram para unir o país em tempo de crise e oferecer aos norte-americanos a oportunidade de aceitar a dor e saná-la, e com isso reconquistar uma sensação de segurança.
Em um momento no qual outros líderes buscariam evitar mensagens divisivas e promover a união entre seus admiradores e detratores, como Bush fez ao visitar uma mesquita depois dos ataques terroristas do 11 de setembro, o foco de Trump parece ser a ideia de que os Estados Unidos vivem um momento decisivo e que só ele é capaz de salvar o país, uma tática clássica entre os demagogos. O atirador de Orlando, que nasceu em Nova York, filho de imigrantes afegãos, ofereceu a Trump sua maior oportunidade de até o momento de propor uma versão da famosa pergunta de Ronald Reagan nos debates presidenciais da eleição de 1980: você se sente mais seguro hoje do que há oito anos?
Nos momentos trêmulos que se seguem a um ataque terroristas, as pessoas se apanham confiando em "raciocínio emocional, em oposição ao pensamento racional sobre esse tipo de questão", diz Samuel Justin Sinclair, professor assistente de psicologia na Escola de Medicina de Harvard e coautor de "The Psychology of Terrorism Fears".
"É perigoso pensar sobre decisões políticas importantes de modo reativo, e partindo do medo", disse Sinclair.
Ele acrescentou: "Quer você concorde com sua postura política, quer não, creio que as táticas mais agressivas de Trump possam ser uma tentativa de afirmar alguma medida de controle em uma situação na qual as pessoas se sentem assustadas, sentem ter perdido o controle -como um modo de fazê-las se sentirem mais seguras. O dilema, então, passa a ser se apoiar essas medidas políticas mais extremas justifica os meios- especialmente em termos de quanto isso nos mudaria como sociedade".
"TERRORISMO RADICAL"
As 36 horas posteriores ao ataque em Orlando destacaram a divergência gritante entre Trump e Hillary Clinton em sua maneira de realizar uma das tarefas essenciais de um presidente: liderar em um momento de crise.
Trump não perdeu tempo para retratar o massacre como prova da correção de seus alertas sobre a ameaça que os Estados Unidos enfrenta e sobre a inépcia do governo Obama.
"Aprecio as congratulações por estar certo quanto ao terrorismo radical islâmico", ele escreveu domingo no Twitter. Ainda que ele também tenha dito que não desejava ser congratulado, divulgou um comunicado em que se autocongratulava uma vez mais: "Porque nossos líderes são fracos, eu disse que isso aconteceria -e só vai piorar".
E na CNN, na manhã seguinte, ele alertou que os refugiados sírios causariam "grandes problemas no futuro", acrescentando que "eu tenho prognosticado muito bem sobre o que vai acontecer".
Trump leu um texto pré-redigido, em seu discurso na segunda-feira, e tocou de leve nos temas que costumam ser ouvidos depois de tragédias. Ele disse que os Estados Unidos precisavam responder ao ataque como "um povo unido" e que o país continuaria a ser "uma sociedade tolerante e aberta".
Mas também argumentou que a determinação de Obama e Hillary de não usar expressões como "terrorismo radical islâmico" -que certamente antagonizariam os muçulmanos- equivalia a minimizar ou ignorar verdades duras sobre o inimigo que os Estados Unidos e boa parte do Ocidente precisam enfrentar.
"A resposta politicamente correta atual paralisa nossa capacidade de falar, pensar e agir com clareza", ele disse. Mais tarde, acrescentou, sobre Obama e Hillary, que "eles colocam a correção política acima do bom senso, acima da segurança de vocês, acima de tudo mais. Recuso-me a ser politicamente correto".
HILLARY
Enquanto Trump atacava Hillary em seu discurso, ela não o mencionou nominalmente em sua fala na segunda-feira.
Delineando seu plano de combate aos jihadistas, ela falou da gravidade da ameaça que os Estados Unidos enfrentam, mas se recusou a prever calamidades. "Não tenho dúvida de que seremos capazes de enfrentar esse desafio, se nos mantivermos unidos", ela declarou.
Hillary advertiu contra a busca de "bodes expiatórios" e contra a "erosão da confiança". Fez questão de dizer que os Estados Unidos não são "uma terra de ganhadores e perdedores". E, ao apelar por unidade, recuou à revolução que deu independência ao país, relembrando como "13 colônias turronas" conseguiram se unir.
"Quando contemplo a história dos Estados Unidos, vejo que sempre fomos um país do nós e não um país do eu", ela disse. "Unimo-nos porque a união nos torna mais fortes".
Para acentuar sua posição, Hillary falou dos dias que se seguiram aos ataques do 11 de setembro, relembrando o alerta de Bush contra maus tratos aos muçulmanos dos Estados Unidos.
"Vamos garantir que nosso olhar esteja voltado ao melhor de nosso país, ao melhor dentro de nós", ela declarou.
Assessores de Trump declararam que ele estava simplesmente falando francamente com o povo norte-americano depois de oito anos de política de segurança nacional indecisa da parte de Hillary e Obama.
Mas falar francamente ao povo pode ter diferentes significados. A historiadora Doris Kearns Goodwin relembra que "o medo demagógico despertado" depois de Pearl Harbor levou à internação de dezenas de milhares de norte-americanos de origem japonesa em campos de prisioneiros, na Segunda Guerra Mundial -algo que Trump disse que poderia ter apoiado naquele momento, embora odeie a ideia.
Goodwin relembrou as palavras de um jovem norte-americano de origem japonesa, que vivia em Seattle e expressou choque pela atitude dos Estados Unidos ao ser encaminhado a um campo de internação. A historiadora afirmou em e-mail que "se continuarmos por esse caminho demagógico, milhões de cidadãos podem vir a fazer pergunta semelhante: são esses os Estados Unidos que um dia conhecemos?"
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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