Moradores de Londres relatam 'choque' e 'incertezas' com resultado
A declaração de divórcio britânico chegou como uma surpresa para a grande maioria dos europeus que moram em Londres. Apesar do avanço conservador, do discurso anti-imigração e da vantagem do Brexit em várias pesquisas, as palavras mais ouvidas nas ruas com os infinitos sotaques do inglês falado na ainda mais cosmopolita cidade do mundo são "choque" e "incerteza".
Marcílio Secchetto, 53, que trabalha para uma ONG ligada ao NHS (o serviço público de saúde que inspirou o SUS brasileiro), define com mais gravidade a situação. "Medo. Até agora é especulação, mas sinto medo por mim, pelo NHS, que depende de trabalho de imigrantes, e pelos próprios ingleses", diz. Ítalo-brasileiro, ele iniciou o processo para obter cidadania há alguns meses, motivado pelo clamor anti-imigração do referendo.
Para a advogada brasileira especializada em migração Vitória Nabas, quem quiser se mudar para o Reino Unido usando nacionalidade europeia deve fazê-lo logo. "Depois a porta vai fechar". Os que estão no país, avisa ela, devem se apressar na formalização da cidadania.
Pelas ruas de Dalston, o bairro de hipsters globais, turcos, árabes e britânicos progressistas, há sinais de solidariedade e lamento. "Pela manhã todos os clientes britânicos pediam desculpas", diz a garçonete francesa da lanchonete Bread & Butter, Nadeje Poey, 29. Ela quer ficar o quanto puder. "Mas estou preocupada, muitas incertezas, não sei o que vai acontecer comigo, com meus amigos. Lamento pelos britânicos e penso nos escoceses e irlandeses", diz em referência à possibilidade de fissura do Reino Unido.
Gerente do The Tablot, Sarah Labigne-Wilson, 37, mora há 20 anos na cidade e teme o futuro da indústria de hospitalidade, marcada pelo trabalho imigrante. "E não é só isso. Venho da Alemanha e sei como as guerras começam quando nos negamos a fazer alianças", lamenta. Sarah, assim como a maioria dos europeus entrevistados, não teme ter sua cidadania negada, mas se dize totalmente desconfortável com a ideia de enfrentar a fila da imigração para entrar e sair do Reino Unido –e com o fato do discurso xenófobo ter ganho a disputa.
O britânico Daniel Garton, 39, engenheiro de software, ficou tão furioso com o resultado que decidiu dar entrada no passaporte alemão, ao qual tem direito pelo lado materno. "Nós falhamos em lidar com nossos medos. Essa xenofobia, pelo mundo, me lembra os anos 1930", diz ele, afirmando se sentir distanciado da identidade britânica.
Gerente do kebbab "New Kapital", Sasho Iskarov, 29, era um dos poucos que não demonstrava preocupação. Búlgaro, ele já combinou a vinda de um colega para ajudar na cozinha. "Ele chega no mês que vem, não acho que terá problemas, vamos esperar e ver o que vai acontecer. Eu vou ficar aqui", diz.
Epicentro das aspirações globalizantes pós-coloniais britânica, a London School of Economics e Political Science reunia ontem estudantes de mestrado decepcionadas. Ema Šťastná, 25, veio da Checoslováquia com o plano de trabalhar em Londres para pagar os investimentos de 19 mil pounds (quase cem mil reais). "Estou chateada, chocada. Não é barato estudar aqui. Muitos agora vão optar pelos EUA e outros países europeus", diz.
A ítalo-francesa nascida em Hong Kong Beatrice Di Caro, 22, fala italiano, mandarim, francês, inglês e espanhol e não esconde a decepção com o que vê como uma decisão isolacionista dos britânicos.
"Estou de mudança para Xangai, já tinha planos de trabalhar na Ásia. Mas isso não diminui o problema. Queria ter a porta aberta para meu retorno, mas agora coisas horríveis podem acontecer na Europa", diz em frente à biblioteca da universidade, referindo-se a Marine Le Pen na França.
Leonard Friet, 25, compartilha dos receios de Beatrice, mas diz sentir pena dos britânicos "Acreditaram que a saída era solução para a falta de aumento dos salários, por exemplo. A União Europeia também fica enfraquecida, perde um membro do Conselho de Segurança que possui armas atômicas", afirma.
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