'Dormimos e acordamos com medo', dizem crianças sobre guerra no Iêmen
Meu filho Yousef chama os bombardeios de "fogos de artifício". Ele se encolhe de medo quando as explosões nos acordam, durante a noite. Corre até a pessoa mais próxima e a abraça para se proteger.
O menino completará três anos em dezembro, mas já passou por três guerras.
Durante uma de nossas conversas noturnas, pedi às minhas três filhas que escrevessem sobre o que está acontecendo ao redor delas, e que postassem seus textos no Facebook. A mais velha, Kholud, 15, escreveu: "Nós, as crianças do Iêmen, queremos realizar nossas esperanças: estudar, brincar e atingir nossos objetivos. Dormimos com medo, acordamos com medo e saímos de casa com medo".
The New York Times | ||
Mohammed al-Asaadi em casa com sua família no Iêmen |
Quando as bombas explodem perto, as ondas de choque fazem com que a casa se sacuda severamente, abrindo portas e janelas. Parece que as explosões acontecem dentro de nossos ouvidos. Meu filho e Haneen, 12, minha filha mais nova, acordam gritando, e saem correndo em qualquer direção pela casa escura.
Um vídeo gravado por um amigo mostra uma explosão de bomba tão perto de nós, no mês passado, que nos derrubou de nossas camas.
Minha mulher e eu acertamos uma divisão de funções. Ela cuida de nosso menino, que dorme em nosso quarto. Eu cuido das meninas, no quarto ao lado. As primeiras palavras que lhes dizemos são "vocês estão bem, estamos todos bem. A explosão foi longe de nossa casa. Não tenham medo. Estamos todos bem. Vocês estão bem".
Nós nos reunimos e nos abraçamos, todos juntos. Se a noite for especialmente ruim, dormimos todos juntos.
The New York Times | ||
Yousef, 2, caçula de Mohammed al-Asaadi |
Muito tempo atrás, quando a guerra começou, expliquei às minhas filhas o que exatamente estava acontecendo: quem estava lutando contra quem, e por quê. Elas compreendem que não somos alvo direto de nenhum dos combatentes, mas podemos ser danos colaterais à espera de acontecer, por estarmos no lugar errado na hora errada.
Por isso, limitamos os nossos movimentos. Meus filhos definem essa situação como "viver em prisão domiciliar".
A escola é um lugar a que eles deveriam ir, a despeito de nossos medos. Para resumir, acredito fortemente que a educação seja o portão para um futuro mais seguro.
Asma, 14, é a primeira a gastar dinheiro e a última a poupar. Ela adora crianças e ama seus amigos. Quando li o que ela tinha escrito para seu post no Facebook, chorei.
The New York Times | ||
Asma, 14, filha de Mohammed al-Asaadi |
"Temos medo da catástrofe, porque é doloroso quanto uma pessoa mata outras; pais, mães e filhos. É como se a consciência das pessoas fosse uma pedra. E cada pessoa com autoridade faz só o que quer".
Haneen, 12, é tagarela e criativa. Vive perguntando que coisas ainda não foram inventadas, porque diz que deseja inventar alguma coisa que beneficie a todos.
Uma vez, quando pedi desculpas por estar atrasado, explicando que estava no trabalho ajudando as crianças do Iêmen, ela me cobrou: "Nós também somos as crianças do Iêmen".
Eis um trecho do que ela escreveu para o Facebook:
"A situação está piorando a cada dia. Nossos estudos foram interrompidos, é proibido brincar. A água e a eletricidade de todos os moradores foram cortadas. A cada dia, o barulho fica mais e mais alto, bem perto de nós".
The New York Times | ||
Haneen, 12, filha de Mohammed al-Asaadi |
"No entanto, duas questões me confundem: como o nosso futuro poderá ser bonito se eles tiverem destruído o Iêmen? Quando esta guerra terminará e o Iêmen será libertado, e o futuro será bonito, inshallah [se deus quiser]"?
Meus filhos estavam em casa sábado quando as bombas mataram mais de 100 pessoas em um funeral em Sanaa. Eu estava sendo entrevistado ao vivo na BBC Arabic, falando em nome da Unicef (fundo da ONU para a infância) sobre o surto de cólera do país. A caminho de casa, vi as filas diante de um hospital.
Meus filhos descobriram sobre o ataque horas mais tarde, quando tinham concluído seus deveres de casa.
Eles sempre têm perguntas. Perguntaram se algum de meus amigos havia sido morto.
The New York Times | ||
Kholud, 15, filha de Mohammed al-Asaadi |
Respondi que sim: o prefeito de Sanaa. As meninas ficaram em choque. Decidi verificar seus deveres de casa, para mantê-las ocupadas. Mas tão logo elas se acomodaram para dormir, um ataque aéreo sacudiu nossa casa toda. Dois outros se seguiram. Nós as levamos de seu quarto para o centro da casa. As crianças dormiram todas no mesmo colchão, onde posso abraçá-las caso um ataque aéreo atinja a área.
Assim é a vida em uma zona de guerra. A cada dia você acorda para encontrar uma surpresa desagradável: morte ou ferimento para um amigo ou parente. Você testemunha a destruição do bairro em que passou sua infância, da escola e da lojinha onde costumava comprar doces.
Você tem de viver sem eletricidade, água, combustível e serviços sociais. Ninguém quer viver uma vida cuja maior realização seja sobreviver por mais um dia e o maior prazer seja simplesmente dispor de uma conexão ininterrupta com a Internet.
Guerras são destrutivas não só para as cidades, mas também para as almas.
MOHAMED AL-ASAADI tem quatro filhos e vive em Sanaa, a capital do Iêmen, e se viu apanhado em uma guerra entre rebeldes apoiados pelo Irã e forças apoiadas pela Arábia Saudita, iniciada há mais de dois anos. Ele foi jornalista, e hoje trabalha na área de comunicações da Unicef.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
Um mundo de muros
Em uma série de reportagens, a Folha vai a quatro continentes mostrar o que está por trás das barreiras que bloqueiam aqueles que consideram indesejáveis