Mulher do atirador de Orlando rompe o silêncio e diz que não sabia
As coisas enfim pareciam estar começando a melhorar para Noor Salman e seu marido, Omar Mateen. Ele havia iniciado um programa de treinamento para se tornar policial, e havia dado joias de presente a ela para comemorar. Mateen a autorizou a visitar sua família na Califórnia e lhe deu dinheiro para a viagem. E parou de espancá-la.
Por isso, na tarde de 11 de junho, quando ele avisou que não jantaria em casa, ela pediu para que não saísse. Era sábado, e Salman queria uma noitada em família. Mas ele disse que precisava se encontrar com um amigo, e se despediu da mulher e do filho de três anos com abraços e beijos.
Mateen não voltou para casa. Em lugar disso, pegou o carro e fez o percurso de duas horas entre a casa da família em Fort Pierce, Flórida, e uma casa noturna em Orlando na qual ele matou 49 pessoas e feriu dezenas de outras antes que a polícia o matasse, pondo fim a um dos piores ataques terroristas realizados nos Estados Unidos desde 2001.
Reprodução/MySpace | ||
O americano Omar Mateen, 29, entrou armado na boate gay Pulse, em Orlando, e matou 49 pessoas antes de ser morto pela polícia |
Salman, cujos pais emigraram da Cisjordânia para os Estados Unidos em 1985, se tornou imediatamente suspeita. Agentes do Serviço Federal de Investigações (FBI) norte-americano a interrogaram durante horas, extraindo informações como a de que ela havia acompanhado o marido quando ele comprou munição e quando visitou a casa noturna para estudar o terreno. Alguns agentes acreditavam que ela estivesse mentindo.
Mas em uma entrevista, a primeira que ela concede desde o acontecido, Salman negou qualquer envolvimento no ataque ou conhecimento sobre o que seu marido pretendia fazer. Ela o descreveu como uma pessoa que se zangava facilmente, a espancava com frequência e vivia sua vida em segredo.
"Eu não estava ciente de coisa nenhuma", ela disse. "Não aprovo o que ele fez. Lamento muito pelo que aconteceu. Ele machucou muita gente".
O crime do marido, diz Salman, a deixou arrasada e com medo. Ela vive com medo de ligar a televisão e ouvir o nome de Mateen. Há dias, e eles são frequentes, em que não consegue sair da cama e precisa confiar em membros da família para tomar conta de seu filho. Ela se mudou três vezes desde o ataque, na esperança de evitar a imprensa, e pediu que seu atual endereço não fosse mencionado.
E Salman está vivendo em um limbo judicial, já que os promotores públicos estão considerando acusações contra ela que incluiriam a de mentir ao FBI. Seus advogados, Linda Moreno e Charles Swift, dizem que sua cliente nada fez de errado. Eles não permitiram que Salman, 30, falasse sobre suas discussões com o FBI, mas Swift disse que ela havia "contado tudo que sabia aos investigadores".
Na entrevista, Salman disse que tinha um motivo para se pronunciar publicamente agora. "Quero que as pessoas saibam que sou humana, que sou mãe".
Ela conheceu Mateen em 2011, em um site de paquera chamado Arab Lounge. Ficou encantada com ele praticamente desde o primeiro momento. Embora ele fosse religioso e ela não, isso não lhe parecia um problema. "Eu achava que ele era o homem perfeito", disse Salman.
Depois de se casarem, eles se mudaram para Fort Pierce, para um apartamento de dois quartos cuja dona é a mãe de Mateen. Salman não demorou a engravidar. O marido trabalhava à noite, como segurança, e ela cozinhava e cuidava da casa.
"Ele era um homem gentil", ela disse.
Mas o comportamento de Mateen mudou abruptamente depois de cerca de seis meses de casamento. Um dia, quando ela estava grávida e os dois saíram para comprar roupas de bebê, Mateen teve um acesso de raiva e deu um soco forte no ombro da mulher, causando um hematoma, ela disse. Em seguida, eles foram à casa dos pais dele e, antes de entrarem, ele a avisou: "Enxugue as lágrimas. Isso fica entre nós ou vai piorar".
Quando ele se zangava, mordia os lábios e cerrava os punhos rigidamente. Em público, ele também tinha uma palavra código que usava quando a mulher estava fazendo alguma coisa que não o agradava. Ele a chamava de "shar". É uma abreviação de "sharmuta" - vagabunda ou prostituta, em árabe.
Ele puxava o cabelo de Salman –e ela descobriria posteriormente que fazia a mesma coisa com sua primeira mulher. Mateen a segurava pelo pescoço, restringindo sua respiração e ameaçando matá-la. Ele nunca pedia desculpas. "Não tinha remorso", disse Salman.
Mas ela diz que tinha medo de terminar o casamento. Se ela saísse de casa, Mateen ameaçava, ele ficaria com a guarda do filho. "Você não tem prova de que eu bato em você", ele disse. "E nem emprego".
Os sinais de alerta quanto à sua radicalização podem parecer óbvios em retrospecto. Salman sabia que seu marido assistia a vídeos de jihadistas, mas não achava que isso fosse sério porque o FBI aparentemente o havia considerado inofensivo, ela diz.
Agentes investigaram Mateen em 2013 depois que ele disse a colegas de trabalho que era membro do Hizbollah, tinha elos familiares com a Al Qaeda e queria morrer como mártir. Dez meses mais tarde, o FBI encerrou o caso. Naquele mesmo ano, a agência voltou a interrogá-lo, em outra investigação sobre terrorismo. Por isso, quando Mateen disse à mulher que ficasse quieta quanto aos vídeos, ela obedeceu.
"O FBI o inocentou", ela disse.
Nas semanas finais da vida de Mateen, disse Salman, o marido voltou a ser gentil. Ela acreditava que isso fosse uma recompensa pelo seu silêncio.
No dia do ataque, Mateen chegou em casa, do trabalho, por volta das 3h. Disse a Salman que ele permitiria que ela viajasse à Califórnia para visitar a mãe pela primeira vez em anos. Deu-lhe US$ 500 para a viagem, e levou a mulher e o filho de carro ao McDonald's. Eles pararam em um banco, onde ele sacou mais US$ 500 para a mulher. Depois, partiu.
Em casa naquela noite, Salman escreveu o cartão de Dia dos Pais que havia comprado para o marido e foi se deitar. Por volta das 4h, a mãe de Mateen ligou, preocupada, procurando o filho. Salman tentou ligar para o celular do marido mas não teve resposta.
Por fim ele lhe enviou uma mensagem de texto, perguntando se ela havia visto o que aconteceu. Ela respondeu que não.
"Amo você, nenê", ele respondeu. Foi o último contato que Salman teve com ele.
Mais tarde naquela manhã, ela foi informada pelo FBI de que seu marido havia morrido em um tiroteio com a polícia depois de cometer homicídio em massa. Meses mais tarde, recordando aquele dia, ela começou a chorar.
"Como alguém pode ser capaz disso?", ela disse.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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