Opinião
Quando um pai diz ao filho que o debate é impróprio, algo vai mal
Cheguei aos Estados Unidos há exatos vinte e um anos. Três meses atrás dei início ao meu processo de cidadania. No ano que vem serei americano, e a culpa disso é, em parte, de Donald Trump.
Aqui, estou incluído no grupo demográfico designado como latino, ou hispânico. É a fatia populacional americana que mais vem crescendo nos últimos anos. Ela está no centro de uma questão que, nestas eleições, dividiu as campanhas políticas de republicanos e democratas. O constante fluxo de imigração legal e ilegal, proveniente de países latino-americanos, modifica o perfil populacional de inúmeras cidades americanas, influencia o mercado de trabalho formal e informal, e altera o peso político de grupos étnicos diversos, em muitos casos de origens rurais.
No sul da Califórnia o trabalho não qualificado, como a manutenção de jardins e vagas auxiliares na construção civil, antes ocupadas sobretudo por mexicanos, passa aos poucos a salvadorenhos e guatemaltecos.
Dados censitários recentes mostram que, em poucos anos, mais da metade das famílias residentes na cidade de Los Angeles falará, em casa, o espanhol. Los Angeles é praticamente do tamanho de São Paulo.
A minha filha, de 10 anos, e o meu filho, de 7, vão a uma das escolas públicas do nosso bairro. A escola é predominantemente latina. Várias das lições deste último mês foram sobre a política e as eleições. Um dos trabalhos de casa era montar um organograma da estrutura dos três poderes, em nível federal e estadual, com o nome completo dos incumbentes: Presidente, vice, governador, senadores etc., até mesmo o vereador que representa o distrito em que moramos.
Aprendi com minha filha os nomes dos juízes da Suprema Corte americana. Em caso de vaga, o presidente nomeia um novo magistrado. A Suprema Corte tem um papel importante na decisão de questões que dividem a opinião do país; casos fundamentais para a proteção dos direitos do cidadão, sobretudo das minorias. Aqui entra Trump, torcendo meu braço, cantando ladainhas de exclusão que me levam a requerer cidadania.
À mesa do café da manhã, meu filho estira o lábio inferior, faz o famoso biquinho de Trump e ouve, de rosto contraído, fingindo transtorno, perguntas que a irmã, à Hillary, lhe faz e que ele não consegue responder. Os dois brincam com as atuações dos candidatos durante o debate presidencial. Também fazem graça comigo, que não pude votar. Momentos antes do terceiro debate, fui lembrado disso, quando precisei explicar à minha filha que aquele ela não poderia assistir.
Quando um pai diz a uma criança, curiosa pela política, que o rito fundamental da democracia –o debate de ideias– é impróprio, alguma coisa vai mal, independentemente do resultado das eleições. De uma próxima, Cecília, farei o possível, no voto, para que isso jamais volte a acontecer.
JOSÉ LUIZ PASSOS é escritor, autor de "O Marechal de Costas" (Alfaguara), e professor de literatura luso-brasileira na Universidade da Califórnia (UCLA) em Berkeley.
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
Um mundo de muros
Em uma série de reportagens, a Folha vai a quatro continentes mostrar o que está por trás das barreiras que bloqueiam aqueles que consideram indesejáveis