Ascensão de populistas como Trump acende alerta ao pensamento científico
Galileu Galilei atraiu a atenção indesejada da Igreja Católica quatro séculos atrás. Em 1616, sua convicção de que a Terra orbitava o Sol, contrariando a visão geocêntrica do universo, simplesmente irritou os teólogos. Em 1633, o astrônomo foi posto em prisão domiciliar e proibido de divulgar suas ideias, situação que prevaleceu até sua morte, em 1642. Poderia ter sido pior para o herege: ele poderia ter sido queimado vivo.
É muito possível que os cientistas voltem a sentir o peso do repúdio de autoridades no poder. Donald Trump, o presidente eleito dos Estados Unidos, estabeleceu suas credenciais anticientíficas ao declarar que as mudanças climáticas são um embuste chinês.
Hannah McKay/Reuters | ||
Manifestante protesta com cartaz com os dizeres "Trump, genocida do clima" em Londres |
Na pessoa de Mike Pence, ele escolheu um colega de chapa que parece não acreditar na evolução. Um blogueiro de ciências disse que o gabinete de Trump dá a impressão de que sua equipe "redigiu uma lista de todos os 300 milhões de americanos, os classificou em ordem de competência –e então foi diretamente para o fim da lista".
Agora Trump tem a oportunidade de converter ameaças eleitorais em ações políticas. A Agência de Proteção Ambiental (EPA) e a Nasa estão entre as organizações na linha de fogo.
Trump não é o único político populista a cantar o refrão anticientífico: em seu discurso de vitória, Paul Nuttall, o novo líder do Partido da Independência do Reino Unido (Ukip), ridicularizou as mudanças climáticas, caracterizando-as como símbolo de preocupação da elite.
Os fatos e a busca da verdade objetiva compõem a essência da ciência; o desprezo por eles é uma das características da nova política e é visto como motivo de orgulho. Com a ascensão dos partidos populistas, precisamos nos preparar para encarar um assalto renovado ao pensamento científico e um recuo para a negação da razão.
Por que a ciência está sob ataque? Uma explicação possível é que ela favorece as evidências objetivas, em detrimento da experiência subjetiva. Em outras palavras, a experiência que você viveu não necessariamente corresponde aos fatos que eu averiguei. Se um partido monta uma ideologia em torno da experiência em primeira mão das pessoas, como a rejeição da imigração, é pouco provável que ouça estatísticas contrárias que apontam para a imigração, em geral, como sendo crucial para o crescimento da economia.
Os partidos populistas se retratam como estando em oposição às elites. Os cientistas, infelizmente, encarnam a definição de uma elite: "Um grupo seleto que, em termos de capacidades ou qualidades, é superior ao restante de um grupo ou sociedade". E a ciência é uma profissão global.
Assim, os principais pesquisadores científicos fazem parte da elite global, esse flagelo moderno, movimentando-se entre lugares privilegiados como as melhores universidades, o Vale do Silício e as grandes empresas farmacêuticas ou trabalhando em agências internacionais como a Cern (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear) e a Organização Mundial de Saúde, que operam como enclaves diplomáticos.
O ressurgimento da religião na política –tendência notada em "Saving the People: How Populists Hijack Religion", publicado este ano– milita contra o pensamento científico. Populistas em toda a Europa enfocam a islamização como ameaça à civilização europeia, uma postura que requer a recuperação do legado cristão do continente.
A religião propõe uma visão de mundo fundamentalmente diferente da visão científica: ela trata em grande medida de preservar sabedorias prezadas, enquanto a ciência busca derrubá-las.
Um exemplo: pesquisas acadêmicas modificaram nossas ideias sobre o tabaco, o álcool e os poluentes. Esse tipo de pesquisas também torna os cientistas vulneráveis a ataques por parte de setores que acreditam que a regulamentação sufoca o liberalismo e o dinamismo econômico.
Para pessoas que enfrentam a pobreza e o desemprego, é compreensível que as mudanças climáticas pareçam um acréscimo frívolo à sua hierarquia de preocupações.
Mas não se deixe enganar e ser convencido de que a ciência é a vilã da história. O pensamento científico e a tecnologia à qual ele dá origem enriqueceram a sociedade. Nos deram ar mais limpo, água mais potável, saúde melhor e vidas mais longas, menos sofridas.
O fato de tantas pessoas terem deixado de tomar nota desse fato é um sinal perverso de seu sucesso.
Tradução de CLARA ALLAIN
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
Um mundo de muros
Em uma série de reportagens, a Folha vai a quatro continentes mostrar o que está por trás das barreiras que bloqueiam aqueles que consideram indesejáveis