Análise
Exaustão do multilateralismo incentiva protecionismo
Ao cometer a excentricidade de cumprir uma promessa de campanha, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, já está sendo pintado como o coveiro do sistema de livre comércio mundial por ter inviabilizado a Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês).
Assim como na crítica dura à Otan (aliança militar ocidental bancada pelos EUA), que qualificou corretamente de obsoleta, o problema maior é Trump: um tosco sem limites que causa ojeriza à audiência qualificada. Mas o fato é que o movimento contrário ao TPP não é exatamente alienígena.
Saul Loeb - 23.jan.2017/AFP | ||
Donald Trump exibe no Salão Oval ordem executiva que retira os EUA do TPP |
Há hoje, assim como no campo político, um sentimento de exaustão em relação ao multilateralismo que criou Leviatãs burocráticos no comércio. Tanto é assim que Trump de um lado despreza o TPP, mas por outro acena com acordos bilaterais que tendem a respeitar mais os interesses de lado a lado.
Isso decorre, em parte, do fracasso na crença da expansão infinita de mecanismos globais de troca, que atingiu seu apogeu após muito vaivém histórico.
O primeiro acordo de livre comércio dos tempos modernos, o tratado de Cobden-Chevalier, foi assinado em 1860 primariamente para evitar uma guerra entre França e Reino Unido. Gerou uma onda similar, com seis dezenas de acertos similares na Europa nos anos seguintes, todos bilaterais.
A globalização de então, vista como inevitável no âmbito europeu e descrita como a coleira final do militarismo no clássico "A Grande Ilusão" (Norman Angell, 1910), desmoronou com a Primeira Guerra (1914-18) e a emergência do fascismo e do comunismo.
Aos poucos, em especial com o impulso destrutivo da Segunda Guerra, instituições multilaterais se organizaram na política e na economia.
No comércio, em 1947 foi estabelecido o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e suas famosas rodadas de negociação. A coisa cresceu exponencialmente, culminando na criação da OMC (Organização Mundial do Comércio) em 1995, que tornou-se mais um tribunal contra protecionismos acionado com frequência em disputas políticas.
Como as rodadas do GATT levavam a becos sem saída, surgiram acordos regionais mais ou menos amplos, muitos inspirados no modelo que gestou a União Europeia, embora sem o componente de união política –caso do Mercosul, do Nafta (acordo que compreende EUA, Canadá e México), das iniciativas chinesas e do próprio TPP.
Como todo negociador brasileiro que já teve de discutir tarifas com um contraparte argentino sabe, a missão dessas instituições é inglória. Mesmo o caso europeu, tão admirado, está em plena crise, como o "brexit" e a ascensão dos nacionalismos continentais demonstram.
Mesmo na Europa sobram exemplos de protecionismo virulento em nações avançadas, como a França. O governo indiano, presidindo sobre um suculento mercado, está em plena campanha pela compra do "Made in India". A comemoração discreta do Itamaraty pela debacle do TPP não passa despercebida. O slogan "America First" (América em primeiro lugar), repetido por Trump em sua posse, está longe de ser uma novidade.
O embate entre realidade econômica e discurso político não é novo. O Nafta, por exemplo, foi combatido por muitos mexicanos como uma entrega de soberania. Duas décadas depois, é o motor do crescimento do país. Agora que Trump pressiona por revê-lo, não se espera comemoração nacionalista ao sul de sua fronteira.
No caso do TPP, mesmo para Trump a situação é desconfortável pela possibilidade de que a China abocanhe espólios da aliança e amplie sua influência –para o ex-presidente Barack Obama, o sentido da parceria era mais político do que econômico, aliás. Ofertas de acertos bilaterais cirúrgicos, para parceiros estratégicos, poderão ser uma saída.
A decisão do presidente americano parece fazer parte de uma onda maior e cíclica, mas cujo catastrofismo anunciado, se confirmado, pode ser mais debitado na conta da mensagem do que na do mensageiro.
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