Análise
Graças a Trump e Rússia, os EUA estão distraídos e com as mãos amarradas
A internet está fervilhando esta semana com as mais recentes de uma série de revelações sobre contatos e comunicações entre pessoas do círculo mais estreito do presidente e representantes do governo russo.
O capítulo mais recente do escândalo inclui o filho do presidente, seu genro, o diretor de sua campanha presidencial e um ex-publicitário musical mal barbeado, além de uma série de e-mails que ainda pode revelar ser prova irrefutável de um crime. Ele pode ser visto nos Estados Unidos como uma forma de TV-realidade bizarra, mas que tem consequências.
O furor político que sacode os Estados Unidos é visto por uma ótica diferente pelo mundo afora. Os observadores internacionais se perguntam se o drama todo pode afetar a capacidade de liderança da superpotência mundial única.
Muitas pessoas em capitais estrangeiras ainda estavam em choque diante da performance do presidente Donald Trump em sua visita à Polônia e à cúpula do G20.
Al Drago - 16.abr.2017/The New York Times | ||
Donald Trump Jr., filho mais velho do presidente dos EUA, chega à base militar de Andrews em abril |
Nessa viagem, Trump atacou seu predecessor na Presidência, a comunidade de inteligência americana e a mídia, dando cobertura a um governo polonês de tendência cada vez mais autoritária. Mais tarde, em Hamburgo, ele foi essencialmente deixado de lado, sem participar de um acordo comercial importante, das discussões climáticas e do comunicado conjunto final.
Esse novo isolamento dos EUA significa que o G20 virou G19 + 1. A pergunta mais importante é se o recuo dos EUA em relação ao papel de liderança global que exerceu por tanto tempo sinaliza uma mudança mais duradoura.
Nos 111 anos passados desde a primeira viagem de um presidente americano ao exterior –a viagem que Teddy Roosevelt fez ao Panamá para verificar como andava a construção do Canal–, houve mais de 300 missões desse tipo encabeçadas pelo executivo-chefe americano.
A viagem de Trump foi a primeira em que o chefe de Estado dos EUA não foi visto nem como chefe de uma grande potência importante e ascendente ou como líder do mundo livre. Hoje os setores que acompanham o avanço dos escândalos em Washington perguntam se esses escândalos vão deixar Trump e o país que ele representa cada vez mais fracos.
O encontro estranho que Trump teve com o presidente russo Vladimir Putin à margem da cúpula deixou claro mais uma vez que os russos não estão querendo melhorar a percepção que outros têm dos Estados Unidos.
Trump passou uma impressão de ser fraco e estar perdido, sem saber ao certo o que fazer –impressão essa que apenas se agravou quando, após o encontro, os russos deram declarações aparentemente calculadas para solapar a imagem do presidente americano, enquanto este parecia estar fazendo de tudo e mais um pouco para agradar a eles.
Carlos Barria/Reuters | ||
Os presidentes Vladimir Putin (Rússia) e Donald Trump (EUA) se encontram durante conferência do G20 |
É evidente que, para os russos, o encontro foi apenas o capítulo mais recente de uma missão constante para enfraquecer os Estados Unidos e aliança atlântica. Os detalhes específicos do plano russo estão ficando ainda mais claros agora, com a revelação de uma oferta russa de assistência à campanha de Trump e da disposição de Donald Trump Jr. de aceitar de bom grado a ajuda de um governo hostil.
E, horas depois de a revelação mais recente ser noticiada, Natalia Veselnitskaya, a advogada russa ao cerne da notícia, estava na televisão americana, escarnecendo de Trump Jr. e seus colegas por aparentemente estarem "ansiando" por informações que pudessem prejudicar Hillary Clinton.
Esse comportamento nos recorda mais uma vez que o objetivo primeiro da Rússia não foi eleger Trump –foi enfraquecer os Estados Unidos. Agora, com Trump na Presidência, a melhor maneira de enfraquecer o país é alimentar as chamas do escândalo que envolve o presidente.
Putin e a Rússia se beneficiam da paralisia que uma série prolongada de investigações sobre Trump vai causar. Trump ou pelo menos alguns dos que o cercam devem estar começando a entender o que acontece com idiotas úteis quando eles deixam de ser vistos como úteis.
Mas é claro que os russos não são os únicos a se beneficiarem do fato de Trump ter recuado da liderança global, somado à distração do turbilhão de escândalos que o cerca.
O "cessar-fogo" sírio negociado em Hamburgo não ajuda em muito a promover a meta dos EUA de derrotar a milícia terrorista Estado Islâmico, mas oferece benefícios inequívocos ao regime de Assad e ao Irã.
Também os países do Golfo Pérsico estão acelerando a formulação de uma política regional na qual os Estados Unidos parecem não passar de um observador externo e confuso.
A Coreia do Norte vem evidentemente testando o novo presidente e encontrou poucos indícios que sugiram que os EUA vão agir decisivamente para frear sua corrida para tornar-se uma ameaça nuclear completa aos interesses americanos.
A Coreia do Norte sabe que, se conseguir concluir o último trecho da corrida para obter mísseis balísticos intercontinentais capazes de alcançar a América e ogivas nucleares suficientes para frustrar os esforços de desarmá-la, sua influência vai crescer imensuravelmente. Os problemas de Trump também beneficiam Pyongyang.
Os líderes de outros países todos já indicaram, por meio de ações como as de Hamburgo, uma disposição de preencher o vácuo deixado pelos Estados Unidos.
A China já o declarou e vem ficando cada vez mais assertiva. Seria ingenuidade deixar de ver que, à medida que o escândalo Trump-Rússia se aprofunda, como agora parece inevitável que aconteça, todas essas potências vão encarar o escândalo não como uma peça de teatro político, mas como força significativa que está impelindo um deslocamento tectônico geopolítico.
Assim, quando você acompanha o drama irresistível das revelações e dos debates de cada noite na TV a cabo, é importante que enxergue os novos fatos como o que realmente são.
Não são unicamente as consequências da eleição de um presidente potencialmente corrupto e cercado por uma equipe de incompetentes pouco preocupados com as leis ou os interesses dos Estados Unidos. O mais importante é que a mensagem transmitida ao mundo é que a superpotência única do planeta está distraída e com as mãos amarradas.
Em outras palavras, o plano russo está mostrando ter sido um sucesso retumbante, com consequências globais profundas. Cabe ao povo americano e aos líderes que emergirem conter os danos.
Tradução de Clara Allain
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
Um mundo de muros
Em uma série de reportagens, a Folha vai a quatro continentes mostrar o que está por trás das barreiras que bloqueiam aqueles que consideram indesejáveis