Inês Prado Soares e Renan Quinalha: A tortura no banco dos réus
Nos dias 9, 10 e 11 de dezembro foram realizadas audiências para ouvir as testemunhas de acusação na ação que o Ministério Público Federal (MPF) move contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, Carlos Alberto Augusto e Alcides Singilo, agentes públicos a serviço da ditadura militar (1964 - 1985), pelos crimes de sequestro e privação da liberdade de Edgar de Aquino Duarte, corretor de valores preso pela polícia política da ditadura em 1971 e até hoje desaparecido.
Esta poderia ser apenas mais dentre as incontáveis ações penais que tramitam em nosso sistema de justiça. No entanto, o que se verificou nesse processo criminal foi um marco histórico: pela primeira vez, agentes públicos notoriamente tidos como torturadores da ditadura brasileira ocuparam o lugar inédito de acusados. A tortura finalmente tomou assento no banco dos réus.
Os ex-presos políticos testemunharam torturas e outras graves violações de direitos humanos que sofreram no DOI-CODI e no DEOPS de São Paulo. Também reportaram ao Juiz os atos nefastos cometidos pelos acusados ali sentados, Augusto e Singilo, e também por Ustra, que não compareceu às audiências.
As poucas perguntas formuladas pelos defensores tiveram o claro intuito de imputar às testemunhas uma condição de marginalidade durante a ditadura militar, realçando que suas formas de resistência seriam ilegais sem considerar, contudo, que o regime de 1964 foi fundado justamente na ruptura da legalidade que se deu com o golpe de Estado. A narrativa de dor e de sofrimentos das vítimas também foi totalmente desprezada pelos advogados dos acusados, que chegaram a pedir a intervenção do Juiz para que fossem interrompidos os relatos sob a alegação de que não tinham relação com o objeto da causa.
Até aí, nenhuma surpresa: os ex-presos vêm denunciando há tempos as atrocidades a que foram submetidos. Além disso, tanto a perpetuação do silêncio como a reprodução do discurso de que as violações de direitos humanos foram um "mal necessário" são expedientes utilizados em diversas partes do mundo pelos perpetradores para justificar suas ações e garantir a impunidade.
A novidade, agora, é que a arena judicial criminal começa a se abrir para escutar a voz das vítimas. Se é verdade que a política encontra-se cada vez mais submetida aos ritos e procedimentos jurídicos, era já esperado que esses conflitos em torno da verdade e da justiça em relação aos crimes da ditadura assumissem também essa dimensão judicial. Espera-se que o Poder Judiciário tenha maturidade e senso democrático para afastar o negacionismo dos acusados, como já ocorreu em nossos vizinhos Uruguai, Chile e Argentina.
Interessante notar a feliz coincidência de tais audiências terem ocorrido justamente poucos dias após as declarações de Navi Pillay, Alta Comissária para os Direitos Humanos da ONU, sobre o Brasil. Ela ressaltou que a impunidade dos crimes da ditadura não pode prosperar e que a Lei de Anistia de 1979 "é um obstáculo para que a Justiça seja feita às famílias".
Mas há ainda vários percalços nessa trajetória. As audiências deste dezembro aconteceram após a tentativa dos acusados de trancamento dessa ação penal junto ao Tribunal Regional Federal (TRF) de São Paulo. Em novembro, ocorreu uma vitória para a impunidade: o TRF de Brasília trancou a ação penal contra o coronel da reserva Sebastião Rodrigues Curió por crimes praticados na Guerrilha do Araguaia (1972-1975). Essa ação visa cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado brasileiro já há três anos a responsabilizar penalmente os autores dos crimes da ditadura.
Apesar das dificuldades, depois de quase 30 anos da transição democrática, nosso país finalmente vive o início de um processo mais amplo de responsabilização histórica constituído tanto pelas inúmeras Comissões da Verdade quanto pelas primeiras ações penais nessa matéria de autoria do MPF.
Com a palavra, agora, está o Poder Judiciário que deverá decidir, nesse e em outros processos criminais, se o Brasil permanecerá como um país "fora da lei" do ponto de vista do direito internacional. Teremos a oportunidade de dar uma resposta judicial contundente no sentido de que a impunidade e o esquecimento não mais encontram abrigo na nossa democracia.
INÊS PRADO SOARES é Procuradora Regional da República e coordenadora, com Flávia Piovesan, do livro "Direitos Humanos Atual: direito à Verdade e à Justiça".
RENAN HONÓRIO QUINALHA é advogado e autor do livro "Justiça de Transição: contornos do conceito"
*
PARTICIPAÇÃO
Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@uol.com.br.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade