José Renato Nalini e Wilson Levy
O Judiciário e os conflitos fundiários
Os conflitos fundiários constituem um dos principais problemas sociais brasileiros. Produtos do processo desordenado de ocupação do território do país desde a colonização, fazem da cidade e do meio rural expressão de campos em disputa.
Quis o legislador constituinte proteger o direito de propriedade como direito fundamental. A opção foi feita com convicção, pois sua previsão, expressa no caput do artigo 5º da Constituição, se repete no inciso XXII do mesmo dispositivo. No inciso seguinte, porém, o direito de propriedade aparece condicionado ao cumprimento de uma função social.
De acordo com a própria Constituição, na área urbana são os municípios os responsáveis por dar o conteúdo dessa função social (artigo 182). Apesar da longevidade do texto constitucional, contudo, os limites técnicos e orçamentários de boa parte das municipalidades dificultam a sua concretização e a consequente ampliação do acesso à terra urbanizada, favorecendo a multiplicação dos conflitos.
Reintegrações de posse são ocorrências cotidianas nos centros urbanos e na zona rural. Com frequência viram episódios marcados por exasperações violentas, nos quais há risco de lesão a direitos fundamentais, tais como a vida e a integridade física. A situação é delicada porque envolve, com frequência, população socialmente vulnerável.
A ordem que determina uma reintegração é sempre proferida por um juiz. Não foi ele quem deu causa ao conflito, mas isso nem sempre fica claro para a opinião pública. Compete ao juiz a ingrata missão de definir o futuro de centenas ou de milhares de despossuídos atingidos por suas consequências.
São espoliados urbanos e agrários, vítimas de um modelo econômico excludente, egoísta e distante do dever de solidariedade que marca o cuidado com a "casa comum", tão bem definido pelo papa Francisco na encíclica "Laudato Si".
Ciente desse quadro de enorme gravidade social, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo está empenhado em construir uma solução estrutural para o problema por meio da criação de varas de conflitos fundiários urbanos e agrários.
A iniciativa busca concretizar o comando constitucional expresso no artigo 126: "Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias". Comando de clareza eloquente, que não admite tergiversação. A ninguém é dado descumprir o texto que edifica o nosso projeto de nação.
Além da previsão expressa na Constituição, há razões estatísticas para se apoiar a ideia. Há em curso no Estado mais de 160 mil ações que versam sobre conflitos fundiários, das quais 35 mil correm na capital, sem contar os incidentes e recursos remetidos à segunda instância.
O desenho das varas de conflitos fundiários do tribunal bandeirante coube a um grupo de trabalho, instituído pela portaria nº 8.971/14, que congregou todos os atores institucionais afetados pela questão urbana, numa perspectiva colegiada e plural. A minuta de resolução elaborada pelo grupo será submetida à apreciação do Órgão Especial do Tribunal de Justiça. O documento merecerá o exame cuidadoso pela erudição dos membros do órgão e poderá ser adaptado para melhor se adequar à legislação em vigor.
Os benefícios da especialização são inequívocos e já foram percebidos em outras searas. Varas da infância e da juventude, da violência doméstica e familiar, de falências, e câmaras ambientais, todas elas conferiram um plus de qualidade à prestação jurisdicional.
Aqui não será diferente. A uniformização das decisões e o desenvolvimento de procedimentos específicos, calcados numa cultura de pacificação e diálogo e adequados às particularidades desse tipo de conflito são dois ganhos importantes.
Com isso, o Tribunal de Justiça de São Paulo pretende reafirmar o seu protagonismo e dar um passo decisivo para contribuir com a criação de cidades justas, democráticas, sustentáveis e pacíficas.
JOSÉ RENATO NALINI, 69, doutor em Direito Constitucional pela USP, é presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJSP
WILSON LEVY, 29, doutorando em Direito Urbanístico na PUC-SP, é diretor da presidência do TJSP
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