TIAGO CINTRA ESSADO
Tortura é crime
O recente episódio que envolveu a prisão em flagrante de um policial militar por suspeita de prática de tortura na zona leste de São Paulo é rico em oferecer reflexões. Pena que é trágico.
Em pleno século 21, a situação retratada ainda surpreende boa parte da população. Como prender o policial que acabara de dar voz de prisão a indivíduo envolvido em roubo e que também foi preso? Como ter segurança pública e paz social diante de ações dessa natureza?
A tortura no Brasil é crime desde 1997. Assim como o roubo, o furto, a corrupção e a lavagem de dinheiro, sua prática enseja a prisão em flagrante - sem direito a fiança -, o devido processo legal, a condenação e, tratando-se de agente público, a perda do cargo.
No entanto o triste é saber que o fato em si –a presença da tortura no cotidiano brasileiro– é algo real, que atinge, sobretudo, parcela periférica da sociedade, e que raramente há prisões em flagrantes de suspeitos desse crime.
A pretexto de se combater o crime, não pode ser comum e tampouco legítimo, em vez de conduzir o indivíduo diretamente à delegacia de polícia, levá-lo para "quebradas", dar-lhe socos e pontapés e enfiar-lhe arma de fogo na boca para, como dizem, "aprender a viver". Isso para dizer o mínimo.
Também não é razoável nem legal conduzir viaturas em alta velocidade, por um bom tempo, às vezes sob intenso calor, para ensinar ao detido ali transportado a não mais violar a lei.
É tortura a omissão por parte dos que têm o dever de apurar e de evitar sua prática. No fato da delegacia da zona leste, acaso o delegado não efetuasse a prisão do policial, sua omissão também poderia ser tida por tortura, para além de eventual prevaricação à luz da lei nº 9.455/97.
Vê-se que a tortura, para o direito brasileiro, não envolve apenas práticas que infligem sofrimento físico e mental para que o sujeito confesse o crime ou dê alguma espécie de informação.
Acaso não mais fossem feitas vistas grossas para presos que são apresentados com visíveis sinais de espancamento, e isso por diversas vezes nos plantões policiais, a realidade poderia ser diversa.
Se os inquéritos policiais que evidenciam abusos policiais fossem apurados e analisados com critério, sem consentimentos implícitos com tais atitudes e nem constrangimentos de se macular essa ou aquela instituição, os números da criminalidade poderiam ser outros. Afinal, violência gera violência.
Se de um lado a responsabilidade pela presença da tortura no país aponta para a boa dose de ignorância popular quanto à realidade normativa vigente, de outro revela que o caráter histórico a envolver essa prática deve-se à omissão tanto de policiais militares e civis, quanto de membros do Ministério Público e da magistratura.
A luta contra a tortura está na essência do Estado democrático de Direito e sua previsão como crime tem origem constitucional. A proibição de sua prática também tem como fontes tratados e pactos internacionais ratificados pelo Brasil e visa a tutelar, em síntese, a dignidade do ser humano.
Essa normativa precisa ser compreendida e posta em prática pelos agentes públicos que lidam na Justiça Penal. Com isso, eventuais prisões em flagrante de possíveis torturadores sempre causarão indignação, mas serão vistas como efeito natural da lei, nada mais.
TIAGO CINTRA ESSADO, 38, é promotor de Justiça, doutor em direito processual Penal pela Universidade de São Paulo - USP e autor da obra "A perda de bens e o novo paradigma para o processo penal brasileiro" (ed. Lumen Juris, 2015)
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