editorial
O futuro de uma ilusão
Mais uma vez um jogo de azar mobiliza as esperanças de grande parte da população brasileira. Desta vez é a Mega-Sena, cujos prêmios acumulados montam a estimados R$ 170 milhões.
Essa febre não é recente. A primeira loteria do país surgiu em 1784; tratava-se de angariar verbas para reconstruir a Câmara e a Cadeia da antiga Vila Rica (atual Ouro Preto, em Minas Gerais). Regulamentadas por d. Pedro 2º, em 1844, tais apostas passaram a engordar o Orçamento da União em 1899, já no período republicano.
E como engordaram. Hoje os recursos das loterias financiam várias rubricas –a começar pela Seguridade Social, destino de 18,1% da receita com a Mega-Sena. O dinheiro custeia ainda o crédito educativo, o Fundo Nacional de Cultura, a construção de penitenciárias e os comitês olímpico e paraolímpico.
O fluxo para os cofres públicos é tamanho que o prêmio, na verdade, equivale a apenas 32,2% do total arrecadado. Ou seja, se alguém fizesse todas as apostas possíveis, ainda assim perderia –como argumenta Adam Smith em sua "Riqueza das Nações". No jogo só existe um único ganhador: o governo.
Isso explica a proliferação das loterias no Brasil, pelo menos desde que o presidente Jânio Quadros estatizou essa atividade, em 1961.
No ano seguinte a Caixa lançou a Loteria Federal. Em 1970 foi a vez da Loteria Esportiva. A Quina surgiu em 1994, a Mega-Sena em 1996, a Lotomania em 1999, a Dupla Sena em 2001, a Lotofácil em 2003.
A receita não tem decepcionado. No ano passado, as dez loterias da Caixa Econômica Federal repassaram R$ 6,38 bilhões para as ações do governo federal, incluindo R$ 1,1 bilhão de Imposto de Renda sobre os prêmios.
No mesmo período, o total recolhido com o imposto sobre herança em todos os Estados brasileiros montou a R$ 4,7 bilhões.
Essa comparação ilumina a natureza dos jogos estatais. A rigor, a loteria nada mais é do que um tributo –um "imposto da ilusão", para utilizar a definição do sociólogo Izildo Corrêa Leite.
De um ponto de vista formal, as apostas são voluntárias: ninguém é obrigado a jogar. Mas as loterias acenam com sonhos tão sedutores que os jogadores, em particular os menos abastados, talvez se sintam quase compelidos a tentar a sorte.
Os indivíduos seguem as pegadas do filósofo Blaise Pascal: arriscam o finito para ganhar o infinito. Que têm a perder? Muito pouco. O governo, nesse caso, se alimenta do azar da sociedade –e pode-se apostar, infelizmente, que essa situação persistirá por muitos anos.
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