ROGÉRIO FASANO
David Bowie, genial e único
Somos influenciados por tudo o que vemos, lemos, comemos, bebemos e cheiramos. Por isso, lendo tudo o que foi escrito sobre o genial David Bowie, fico tentando decifrar por que vários críticos têm tanto prazer em esbanjar conhecimento técnico sobre a obra dele.
Entendo, perfeitamente, que essa é a função de um crítico. Ocorre que, para nós leigos, é quase impossível detectar todos os pontos elencados nas análises. Tenho a impressão de que o próprio Bowie não se preocupava com isso.
Leio, por exemplo, que o artista inglês flertava com a música instrumental no álbum "Heroes" (1977). Pois bem, garanto que nove entre dez pessoas que compraram o disco –como eu, que conheço as letras de trás para frente– não se deram conta disso. Para nós, basta saber que a faixa título é uma das mais geniais que o rock já produziu.
Em qualquer lista das "10 mais" de todos os tempos, "Heroes" tem lugar garantido, ao lado de "Walk On The Wild Side" (Lou Reed), "London Calling" (The Clash), "Another Brick In The Wall" (Pink Floyd) e "Miss You" (Rolling Stones ). Deixo para os especialistas a escolha das outras cinco – desde que "Creep" (Radiohead) esteja entre elas.
Lemos ainda em quase todos jornais e revistas que "Blackstar", último álbum de Bowie, é "jazzístico". Esforcei-me muito, em vão, para identificar algo de jazz ali. Um amigo italiano que sabe tudo de Bowie tampouco conseguiu: "Ma che jazz un cazzo"!
Também não consigo enxergar em Brian Eno, o melhor parceiro de Bowie, o músico erudito que tantos críticos descrevem.
Bowie foi um homem culto. Suas referências eram, como disse antes, tudo o que via, lia, comia, bebia e cheirava (literalmente). De Thomas Mann a Little Richard, uma ampla e variada cultura marcava sua criação.
A verdadeira beleza é inclassificável. O time do Barcelona, por exemplo. Não quero saber se a tática de jogo é "3-4-8" ou "1-12-14"; o que encanta é o futebol bem jogado, de encher os olhos, com aquele monte de craques em campo.
O problema do mundo de hoje é esta necessidade de classificar tudo. Imaginem analisar assim a carreira de um arquiteto: em sua fase "niemeyeriana", ele produziu tais obras. Depois passou por uma fase "starckiana", mas flertou com o neoclássico. Às vezes, parece que a intenção dos especialistas é apenas confundir e exibir conhecimento.
O jazz, o blues, a dance music, o pop, a literatura, o cinema, o teatro, as artes plásticas, o sanduíche do Dean & DeLuca, a lasanha que ele adorava, o gim, a vodca, a cocaína, a heroína, o sexo sem regras –enfim, tudo isso compunha o universo de David Bowie.
O gênio do músico compilou tudo e nos entregou algumas das mais belas letras de todos os tempos, o mais puro rock and roll. Mas a importância de Bowie vai muito além da música. O estilo corajoso do artista estimulou uma série de mudanças comportamentais na sociedade.
Para quem não faz ideia do que significam "meio tom acima", "meio tom abaixo" ou qualquer termo técnico, isto é o que realmente importa –a alma de um puro artista.
Ficar velho é isso: ver seus heróis tombando como dominó, um depois do outro. Já se foram Joe Strummer, Lou Reed e agora o Bowie. Este último golpe foi duro, mas que maneira espetacular de sair de cena. Bowie foi genial e único, até na hora de morrer.
ROGÉRIO FASANO, 53, empresário, é sócio do grupo Fasano
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