editorial
Tolerância máxima
Desde janeiro, um dos livros mais repulsivos jamais escritos está liberado para publicação. Setenta anos depois da morte do autor, o genocida Adolf Hitler, período no qual o Estado da Baviera vinha impedindo a reedição, o texto cai agora em domínio público.
Trata-se da autobiografia panfletária (1925) em que o futuro ditador alemão empilha ressentimentos e os traduz em ódio patológico contra judeus, comunistas, eslavos e outros povos e minorias "inferiores". Essas noções foram derrotadas tanto pela ciência, como pelas armas; subsistem numa franja de extremismo passadista e inexpressivo.
Duas editoras brasileiras apressaram-se a lançar o livro. A primeira edição, que se resume ao texto original, foi proibida e apreendida pela Justiça fluminense, que ainda deverá examinar recurso. Uma segunda edição, acompanhada de aparato crítico, está prevista para o mês de março.
Numa sociedade de fato democrática, convém cultivar a liberdade de expressão na latitude mais ampla, dado que ela é pré-requisito para o exercício das demais liberdades e garantia de que, mediante o confronto desimpedido das opiniões, a própria sociedade se esclarece e evolui.
Ideias, mesmo que estúpidas, combatem-se com ideias melhores. Existem, ademais, razões práticas para tolerar barbaridades como este "Minha Luta": proibições tendem a glamurizar obras que não merecem sequer essa distinção emprestada, além de resultarem inócuas, pois o texto segue disponível em versões clandestinas na internet.
Mas há uma questão de princípio. Embora não admita a censura prévia, pelo que acarreta de cerceamento, a melhor tradição democrática estipula situações em que o abuso da liberdade de expressão justifica sanção. É quando se pratica injúria pessoal ou se divulga informação falsa por má-fé; é também quando se incita ao desrespeito das leis e à violência.
Este último é o caso, sem dúvida, de "Minha Luta". Ainda assim, o risco de incitação deveria ser atual, premente, imediato -o que não acontece neste livro rancoroso que, cultuado embora em círculos extremistas isolados, é hoje uma pálida reminiscência histórica de uma era felizmente superada.
A própria tragédia da Alemanha durante a República de Weimar (1919-1933), que naufragou no pesadelo nazista, recomenda à democracia ser tolerante com ideias, por odiosas que sejam, mas implacável contra a mais tênue ameaça de implantá-las pela força.
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