MAURICIO MURAD
Torcida única trouxe benefícios para o futebol de São Paulo? NÃO
VAMOS MATAR O CARRAPATO, NÃO O GADO
Querem acabar com o carrapato matando o gado. Esse disparate descreve bem a situação das torcidas de futebol no Brasil.
Os carrapatos, no contexto futebolístico em questão, são os violentos infiltrados nas organizadas, em torno de 5% de seus componentes. Os gados são a própria torcida.
Cerca de 2 milhões de brasileiros (85% homens, 15% mulheres) estão agrupados nas quase 700 torcidas organizadas do país, sendo 435 as mais atuantes e 107 as filiadas à Anatorg, associação nacional da categoria.
Entre 2014 e 2015, 15% das torcidas foram reincidentes em vandalismo e violência, enquanto só 3% dos delitos foram julgados e punidos até o fim. A impunidade afronta um patrimônio da nossa cultura coletiva, identidade de largo alcance. Nossa Constituição é clara: esporte é direito da cidadania, e segurança é dever do Estado.
No entanto, impor torcida única para os clássicos disputados no Estado de São Paulo, como fez recentemente a Secretaria de Segurança Pública, está longe de ser a solução mais adequada.
Exemplo de derrota geral da sociedade brasileira? Sim, e talvez também o primeiro passo para se acabar com as organizadas.
Em geral, elas são entes da cultura do esporte, fiéis, o 12º jogador, ajuda importante às finanças de clubes tão endividados pela incompetência de dirigentes. Necessárias, assim, enquanto entidades do bem, seguidoras da lei e da tolerância: adversário não é inimigo, nem competição é agressão.
As imagens de barbárie, que entram em nossas casas sem pedir licença, provam que os delinquentes são minoria, e quase sempre os mesmos. Será que não somos capazes de punir e conter essa gente? Criminalizar e demonizar o todo pela ação da parte é equívoco comprovado.
O princípio pedagógico, ético e jurídico da punição é estabelecer a diferença entre quem transgrediu ou não. Autoridades dizem que 100% das brigas passam pelas organizadas. Sim, porque esses segmentos de agressores estão misturados nas organizadas, como carrapatos em pele de gado, mas não representam 100% das organizadas, uma vez que a maioria é pacífica.
A diferença é sutil, mas fundamental para entender e agir: a violência acontece nas organizadas, mas não é das organizadas.
Torcida única não resolve, pois hoje 90% dos conflitos e mortes resultantes da rivalidade entre grupos de torcedores acontecem longe dos estádios, em dias e horas bem diferentes dos das partidas.
Proibidos de entrar nos estádios, os grupos violentos descontentes se espalham, vandalizam as cidades e ainda atacam os adversários após a partida. Isso aconteceu de fato em Belo Horizonte, em Buenos Aires e na Itália, quando a torcida única foi experimentada.
Na última quarta (6), após derrota por 2 a 0 para o Atlético Nacional (Colômbia), pela Libertadores, a torcida do São Paulo entrou em confronto com a Polícia Militar no entorno do Morumbi. Ao menos 19 pessoas ficaram feridas. Embora não fosse uma partida de torcida única, foi mais um exemplo de que não basta excluir um grupo para coibir a violência.
A medida, involuntariamente, empurra ainda mais essas facções criminosas para a clandestinidade, tornando bem mais difícil a missão das autoridades de acompanhar e fiscalizar. O problema é complexo e exige enfrentamento complexo.
Precisamos de um plano nacional de segurança para o futebol, permanente, renovável, em bases científicas, e não de iniciativas pontuais, mediáticas e milagrosas. Um conjunto de medidas integradas e simultâneas, de curto, médio e longo prazos, de punição, prevenção e de reeducação. Não é favor; é obrigação constitucional.
MAURICIO MURAD, doutor em sociologia dos esportes pela Universidade do Porto (Portugal), é professor de sociologia da pós-graduação da Universidade Salgado de Oliveira e autor do livro "Para Entender a Violência no Futebol" (ed. Saraiva)
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