Procurador defende mudança de leis
A Operação Lava Jato completa um ano na próxima terça-feira (17), com números superlativos: já recuperou cerca de R$ 500 milhões de recursos desviados da Petrobras, colocou sob investigação 50 políticos e levou para a prisão executivos de empreiteiras.
O procurador Deltan Dallagnol, 35, que coordena a força tarefa do Ministério Público Federal responsável pelas investigações, quer mais. Em entrevista à Folha, feita por e-mail, ele diz que os procuradores pretendem que a Lava Jato "sirva de alavanca para mudanças legislativas em nosso sistema político e no de Justiça criminal".
Juca Varella - 11.dez.2014/Folhapress | ||
O procurador Deltan Dallagnol ao lado do procurador -geral da República, Rodrigo Janot |
Leia a seguir a íntegra da entrevista:
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Resultado explosivo
A comprovação de tantos fatos tão graves, envolvendo simultaneamente a cúpula econômica e política do país, é algo inédito na história. A grande surpresa decorre, em parte, do fato de que a corrupção é um crime dificílimo de ser provado e, em outra parte, da rapidez com que as investigações avançaram.
Esse crescimento exponencial do caso decorreu, em boa medida, do emprego efetivo de colaborações premiadas, uma técnica especial de investigação, pela força tarefa do Ministério Público Federal. Mas, é, claro, o sucesso do caso também decorre de um conjunto de outros fatores, dentre os quais eu destacaria a experiência, qualidade técnica e sinergia das equipes do Ministério Público, da Polícia Federal e da Receita que trabalham no caso, bem como a atuação firme e imparcial do Poder Judiciário.
Protesto e corrupção
Os protestos contra o governo decorrem de um conjunto de condições, como crise econômica e equilíbrio entre candidatos nas últimas eleições, dentre as quais se inclui também a comprovação do maior esquema de corrupção de que já se teve conhecimento na história do país, na Lava Jato. O caso indica, contudo, que a corrupção é um fenômeno pluripartidário, o que corrobora a noção difusa de uma crise moral de nossa política. Estudos internacionais indicam que a corrupção decorre de uma série de condições, e minha maior preocupação é que o caso seja um motor propulsor para que nós, como país, façamos as mudanças estruturais necessárias para enfrentar esse problema em seus múltiplos aspectos. O caso Lava Jato até agora indignou, mas não transformou o país. Se queremos realmente evitar que essa história se repita, precisamos de mudanças legislativas urgentes sobre o processo político e sobre o sistema de justiça criminal, tornando aquele mais resistente à corrupção e este último mais efetivo.
Delatores
A colaboração é uma técnica especial de investigação que, embora deva ser empregada com algumas cautelas, tem um papel especialmente importante na demonstração da corrução em atos e contratos públicos, o que é um crime dificílimo de ser descoberto e provado.
A corrupção é feita entre quatro paredes e envolve um pacto de silêncio entre corruptor e agente público corrupto. Nenhum dos dois tem interesse em noticiar o fato, não só porque perderiam os benefícios alcançados, mas também porque seriam punidos.
Assim, normalmente não há testemunhas que informem esse crime para o Ministério Público. Além disso, tanto o corruptor como o corrupto tomam todas as cautelas para que o ato ilegítimo praticado pelo agente público se revista de aparência de legalidade. Devemos lembrar também que os corruptos escondem, não raro muito bem, a propina que receberam, em paraísos fiscais que só cooperam quando tivermos prova da corrupção, a qual não alcançamos sem a cooperação. Mesmo quando descobrimos que o agente público tem muito mais dinheiro do que ele ganhou oficialmente ao longo da vida, é extremamente difícil descobrir quais foram as práticas corruptas em que se envolveu dentre os milhares de atos que realizou. Enquanto não for criado o crime de enriquecimento ilícito pelo Congresso, no Brasil, não é possível punir o agente público que tem uma fortuna ilegal se não conseguirmos identificar quais foram os atos corruptos. Dentro desse contexto em que a comprovação da corrupção é difícil, a colaboração do investigado ou réu se mostra amplamente favorável ao interesse público. A colaboração deve, contudo, ser revestida de cautelas, como o reconhecimento de valor probatório à palavra do colaborador apenas quando esta for corroborada por outras provas.
Direito americano
A máxima, aqui, creio que deva ser "ponham à prova todas as coisas e fiquem com o que é bom", como coloca a primeira carta bíblica aos Tessalonicenses. Devemos, é claro, importar institutos norte-americanos apenas quando forem favoráveis à sociedade e compatíveis com nosso direito. Um exemplo disso é o acordo de colaboração premiada clausulado, que não era previsto em na nossa lei até 2013, mas já tinha sido importado, e empregado por 17 vezes, pela força tarefa do caso Banestado, entre 2003 e 2007.
Quanto ao direito brasileiro, precisamos de reformas e com urgência. A luta bem sucedida de Hong Kong contra a corrupção, o que se tornou um exemplo internacional de prevenção e combate a esse crime, foi baseada em três estratégias e uma delas foi exatamente a punição séria e em tempo razoável desse crime. Em razão dos problemas do sistema de justiça penal brasileiro, em que a corrupção é punida, na prática, após mais de década e com penas baixas, a corrupção é um crime de alto benefício e baixo risco. Diga-se que as penas baixas não raro são substituídas por penas restritivas de direitos que são perdoadas após um quarto de seu cumprimento, pelo indulto presidencial de natal.
Se queremos baixar os índices de corrupção, devemos torná-la um crime de alto risco, isto é, um delito cuja descoberta acarrete uma punição proporcional ao mal causado e em tempo razoável, sem, é claro, desprestigiar os direitos fundamentais dos réus internacionalmente reconhecidos.
O que todos desejamos é que o caso Lava Jato não sirva apenas como diagnóstico de uma doença sombria que corrói as entranhas da República, mas que sirva de alavanca para mudanças legislativas em nosso sistema político e no de justiça criminal.
Prisão de empreiteiros
A prisão processual, antes de uma sentença definitiva, é uma medida excepcional que só deve ser empregada quando há determinadas situações excepcionais previstas em lei. Nesse caso, a prisão se justifica para proteger a sociedade e a economia contra a continuidade da prática de crimes extremamente graves.
Hoje sabemos que a deflagração da operação Lava Jato em março de 2014 não foi suficiente para estancar os pagamentos das propinas que continuaram sendo feitos, pelo menos, até o fim de 2014. Temos evidências também de lavagem de dinheiro no exterior até o segundo semestre de 2014. Devemos recordar, ainda, que essas empreiteiras mantêm inúmeros contratos com os poderes públicos federal, estadual e municipal. A única alternativa à prisão, para estancar a corrupção e a sangria de recursos públicos, seria a suspensão de todos os contratos, o que, contudo, poderia prejudicar sobremaneira a população, que seria ainda mais vitimada. Some-se a tudo isso que há evidências de que as empreiteiras apresentaram provas falsas perante a Justiça, o que serve para obstruir as investigações e também justifica a prisão.
Prisão para forçar delação
O argumento de que prendemos para obter colaborações é desconectado da realidade. Dos 12 acordos que fizemos e já são públicos, dez foram feitos com pessoas soltas que jamais foram presas. Os dois restantes foram feitos com pessoas que estavam presas quando do acordo e continuaram presas após o acordo.
A prisão só é pedida pelo Ministério Público, decretada pelo juiz e mantida por tribunais quando estão presentes os requisitos excepcionais que a autorizam no Brasil. Vale ressaltar que as prisões foram submetidas a intenso questionamento. Já temos 165 habeas corpus, que são uma espécie de recurso, em três tribunais superiores ao juiz do caso, e em uma única situação foi determinada a soltura do preso.
Conflito com o governo
Buscamos caminhar em harmonia com todos os órgãos públicos, embora possamos divergir em dois pontos relevantes. Um diz respeito à legitimidade para isentar as empresas de punição, fora dos parâmetros legais, e outro diz respeito à mensagem que queremos passar para a sociedade e seus efeitos.
Primeiro, entendo que falta legitimidade ao Poder Executivo, ou mesmo ao Ministério Público, para isentar as empresas de uma punição que está prevista em lei, salvo quando a própria lei excepciona. Veja-se que não se trata de querer punir ou não a empresa. Foi esta que trouxe sobre si a punição quando adotou práticas corruptas.
Tenho dúvidas também em relação ao argumento do desemprego, porque o que gera emprego é a obra, e não a empresa em si. De qualquer modo, se a lei é ruim, ou por hipótese traria consequências muito prejudiciais à sociedade, incumbe ao parlamento, mediante uma discussão pública com ampla participação da sociedade, mudar a lei, ou questioná-la perante o Supremo Tribunal Federal.
Em segundo lugar, isentar as empresas de punição, fora dos parâmetros das leis vigentes, passará à sociedade uma mensagem muito prejudicial em longo prazo, de que pessoas e empresas poderosas podem cometer quaisquer crimes porque, se forem pegas, são grandes demais para serem punidas, ou, nas expressões americanas, "too big to fail" [grande demais para falir] ou "too big to jail" [grande demais para ser preso]. A corrupção empresarial é uma prática racional que toma em conta custos e benefícios do comportamento corrupto. Se queremos que as empresas se afastem voluntariamente de práticas dessa natureza, devemos majorar os custos, que incluem uma firme punição, ao invés de isentá-las de responsabilidade pelo que fizeram.
Por fim, o que a experiência internacional mostra é que quanto menores forem os índices de corrupção, melhores serão as condições para o desenvolvimento econômico e social, o que inclui a geração de empregos.
Acordos
Tomando em consideração o que dizem nossas leis, entendemos que os acordos de colaboração devem ter três requisitos: reconhecimento de culpa, ressarcimento, ainda que parcial, dos danos, e entrega de informações e provas sobre fatos novos e relevantes. Este último é um requisito essencial. Quando o colaborador, seja uma pessoa ou empresa, traz fatos que ainda não eram investigados, isso abre a possibilidade de potencializar a responsabilização de novos criminosos e o ressarcimento aos cofres públicos por meio de novos processos criminais e cíveis. Se não tivéssemos feito nenhuma colaboração nesse caso, provavelmente tudo que saberíamos seria o recebimento de propinas por Paulo Roberto Costa, em valor inferior a R$ 100 milhões. Hoje comprovamos propinas na casa de bilhões e já recuperamos para os cofres públicos R$ 500 milhões.
O Ministério Público Federal está aberto a fazer acordos com empresas que atendam a esses requisitos de modo satisfatório. Contudo, a maior parte das empresas que nos procuraram ou não queriam entregar fatos novos, ou os fatos trazidos não eram significativamente relevantes, ou ainda não se dispuseram a pagar uma soma razoável a título de ressarcimento.
Sob minha perspectiva, essas empresas ainda têm esperança de alcançar impunidade, pois do contrário teriam atendido os requisitos e feito acordos que seriam benéficos para elas e para a sociedade.
Mãos Limpas x Lava Jato
A Operação Mãos Limpas é um paradigma de combate a organizações criminosas em que a utilização da colaboração premiada foi essencial. Além disso, ela objetivava livrar a Itália de um mal grave e endêmico. Embora, nesses pontos, as duas operações se assemelhem, as semelhanças param por aí. Os crimes cometidos e o perfil das organizações criminosas, de lá e daqui, são bem distintos.
Lá foram cumpridos milhares de mandados e o processo julgado em um bunker construído para o caso, à prova de mísseis, tinha centenas de réus. Estamos bem distantes dessa realidade.
Efeito mensalão
O mensalão foi um ponto fora da curva que refletiu um imenso e louvável esforço da Suprema Corte para dar uma resposta aos crimes praticados pela cúpula de um poder. Contudo, o perfil institucional da Suprema Corte não é de um juízo de instrução e julgamento de crimes. Um dos maiores empecilhos para que julgue os casos de modo célere é o volume de trabalho. Enquanto a Suprema Corte norte-americana julga 80 casos por ano, a nossa julga 80 mil.
A primeira condenação imposta pelo STF aconteceu apenas após cento e vinte anos de sua criação, em 2010. A primeira vez em que esse tribunal determinou a execução de uma pena que impôs foi em 2013, 16 anos após a acusação criminal ser oferecida.
Os mesmos entraves que sempre existiram para a eficiência da Justiça criminal ainda existem. Precisamos de reformas legislativas no sistema recursal, no de prescrições e no de nulidades. É importante criar o crime de enriquecimento ilícito, endurecer o tratamento à corrupção de altos valores e ter instrumentos mais hábeis para recuperar os frutos econômicos dos crimes. Necessitamos assegurar a duração razoável do processo em favor não só do réu, mas também da sociedade. Tudo isso, evidentemente, garantindo os direitos fundamentais do réu inerentes ao processo penal democrático.
Doação oficial é crime?
Doações regulares a campanhas, por cidadãos, não podem ser criminalizadas. Contudo, quando o pagamento de propina é disfarçado de doação legal, esse ato constitui lavagem de dinheiro. Embora legal na aparência, ele é ilegal e, mais que isso, é criminoso. A ideia básica dessa lavagem é fazer dinheiro sujo, a propina, parecer dinheiro limpo, uma doação oficial. Só é admissível a punição dessa conduta quando a acusação provar, para além de qualquer dúvida razoável, que a doação eleitoral é apenas um revestimento feito para conferir aparência lícita àquilo que é, na verdade, repasse de propina.
Risco de nulidade
O Ministério Público Federal está plenamente seguro de que todo ato da investigação foi absolutamente legal, e de que o caso não será anulado. O Ministério Público e a Polícia Federal atuaram com extrema diligência e cautela. O juiz Sergio Moro é um juiz imparcial, muito técnico e com grande conhecimento jurídico. Diz-se que há 60 escritórios de advocacia, dos melhores do país, envolvidos no caso, os quais o analisam com lupas em busca de falhas, e já houve mais de 165 habeas corpus em diferentes tribunais, questionando diferentes aspectos do caso, e o processo se mantém hígido. Dos 165, apenas dois foram concedidos, um que soltou Renato Duque e outro determinando a mudança de uma questão procedimental periférica numa ação penal
Livraria da Folha
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