Com perdão a padre Cícero, Vaticano se concilia com o povo
Finalmente a voz do Vaticano está em harmonia com a do povo. Foi preciso mais de um século e um quarto para Roma deixar os legalismos de lado e estender sua compaixão. Com isso, ela finalmente reconheceu aquilo que o povo do Nordeste sempre soube sobre o padre Cícero Romão Batista: em vida, ele foi um padre fundamentalmente fiel a seus votos sacerdotais e sempre à disposição de todos que buscavam sua ajuda; desde sua morte, tornou-se uma presença santa no cotidiano do povo.
Dizem que os pobres da região vieram inicialmente em busca de um milagre. Essa é uma verdade parcial e uma questão muito complicada: uma hóstia consagrada que o padre deu a uma costureira beata foi transformada na boca dela. O sangue que dali verteu foi declarado o de Jesus Cristo. Seguiram-se disputas teológicas, políticas e sociais; se um milagre de fato aconteceu, e que tipo de milagre teria sido, nunca foi decidido para a satisfação de todos, e é possível que nunca seja.
Mas o que foi transformado indiscutivelmente foi uma pequena vila numa encruzilhada no verdejante vale do Cariri. Em menos de um quarto de século, "Joaseiro", como seu nome era escrito na época, iria florescer, como a árvore que lhe deu seu nome, tornando-se a segunda cidade mais rica do Estado do Ceará e o dínamo econômico de uma vasta região do interior do Nordeste que abrange partes de quatro Estados vizinhos.
E assim ela continua até hoje.
As pessoas que fizeram isso acontecer vieram de inúmeras vilas miseráveis do vasto, árido e muitas vezes inóspito interior, desde os seringais falidos do extremo Norte até os canaviais da região litorânea, que perdiam sua força econômica.
Eram pessoas migrantes, pessoas que "votavam com os pés". Eram os mancos e os coxos, os saudáveis e jovens, os desafortunados e os ambiciosos. Homens, mulheres e crianças, todos migrantes em fuga, muito antes da crise dos refugiados que hoje acomete nosso planeta: pessoas que fugiam dos conflitos armados dos coronéis locais, das condições de servidão abjeta à qual tão frequentemente eram sujeitas, do flagelo da seca recorrente e da fome da miséria constante.
O que encontravam em Joaseiro? Tudo o que o bom padre tinha a oferecer: seus conselhos sábios, pontuais e muitas vezes repetidos; a oferta de trabalho honesto e a recomendação de fazê-lo bem; uma vida coletiva baseada nas bem-aventuranças, na comunidade e na fraternidade, no espírito cívico e na convivência com o próximo, nos frutos a serem colhidos do estudo, da educação e da oração.
Os hierarcas locais da Igreja viviam acomodados na cidade vizinha do Crato e, juntamente com os líderes cívicos do município, se aborreciam com a perda de hegemonia e opulência da cidade e com a ascensão meteórica de Juazeiro do Norte. Eles iriam literalmente passar por cima daqueles que veneravam padre Cícero. Os filhos e filhas nativos de Juazeiro eram vistos com desdém, considerados fanáticos ignorantes. Os romeiros e as pessoas que vinham fixar-se em Juazeiro em número cada vez maior muitas vezes eram desprezados –exceto, talvez, pelas moedas que deixavam nos cofres das igrejas– e eram mal recebidos pela maioria dos clérigos da região, por ordem de uma sucessão de bispos locais.
MUDANÇAS
Essa era, em grandes linhas, a situação vigente quando eu primeiro cheguei ao Cariri, em setembro de 1963. Mas em junho ou julho de 1964, e ao longo dos três meses seguintes de minha estadia, tudo isso começaria a mudar.
E isso se deveu em grande medida a um único padre, dom Francisco Murilo de Sá Barreto. Natural da cidade vizinha de Barbalha, sua morte, uma década atrás, foi marcada por homenagens em toda a região, sendo novamente lembrada neste mês de dezembro. Murilo combateu os preconceitos reinantes e aqueles que os promoviam.
Para ele não havia nada mais evidente que a fé e a prática religiosa dos inúmeros romeiros (que, segundo algumas fontes, teriam chegado a 2 milhões este ano). Murilo não era adepto da Teologia da Libertação, mas, mesmo assim, era movido pelos ventos transformadores do Segundo Concílio Vaticano, de modo que abraçava os romeiros, com seus ritos e orações arcaicos e às vezes sincréticos, como o "povo de Deus". E, com relação à devoção e ao amor deles pelo Padre Cícero, ele a proclamava irrestritamente, sem hesitação.
Murilo formulou novos rituais: ele saudava os romeiros com entusiasmo quando passavam pela entrada da cidade, soltando fogos de artifício e cantando hinos, sentados sobre tábuas incômodas estendidas horizontalmente em fileiras paralelas nas caçambas de caminhões abertos a caminho da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, na outra extremidade da cidade. Ali chegando, ele os fazia lançar seus chapéus de palha, muitas vezes milhares de chapéus de palha atirados simultaneamente no ar, gritando "viva" três vezes em uníssono para saudar a Mãe de Deus e o Padre Cícero.
Murilo deu aos romeiros o respeito e a dignidade que muitos de seus predecessores no clero lhes haviam negado. Igualmente importante é o fato de que suas inovações abriram o caminho para os cidadãos de Juazeiro lançarem uma nova e decidida campanha (uma das muitas travadas desde 1898) para que a Santa Sé "reabilitasse" o Padre Cícero -ou seja, que o reconhecesse por suas virtudes, e não pelos defeitos que, no passado, Roma sempre teimou em insistir que fossem seus. Um novo bispo de Crato aproveitou o momento, e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ratificou o apelo lançado por Juazeiro à Congregação para a Doutrina da Fé, a sucessora do Santo Ofício, a antes temida derradeira corte de apelação dos hereges.
PAPA FRANCISCO
Se Murilo se baseou nos ensinamentos de renovação do Segundo Concílio Vaticano para modificar a visão que a Igreja tem das devoções populares, a reabilitação do Padre Cícero parece dever muito ao papa Francisco.
O expurgo promovido pelo pontífice da corrupção nas mais altas esferas do Vaticano, o fato de ele abraçar os pobres e renovar a dedicação da Igreja à sua vocação de misericórdia, tudo isso de alguma maneira remete à devoção do próprio Padre Cícero, à sua compaixão e ao amor recíproco de seus fiéis.
A imprensa mundial divulgou que, justamente quando o papa Francisco abriu as portas da basílica de São Pedro, na semana passada, para proclamar o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, ele reconheceu publicamente o Padre Cícero como "padre exemplar", um sacerdote para a Igreja "que está emergindo", para uma igreja de nossos tempos.
Pouco importa se o Padre Cícero será beatificado e canonizado algum dia: ele já é há muito tempo o "Santo de Juazeiro".
O brasilianista RALPH DELLA CAVA é pesquisador-adjunto sênior da Universidade Columbia, em Nova York. É autor, dentre outros livros, de "Milagre em Joaseiro" (Companhia das Letras), sobre Padre Cícero, publicado em 1970 e reeditado em 2014.
Tradução de CLARA ALLAIN
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