Governo Lula precisa buscar justiça climática dentro do Brasil, diz socióloga

Adriana Abdenur, diretora-executiva da Plataforma Cipó, destaca necessidade de o país ratificar Acordo de Escazú, que protege defensores ambientais

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Cristiane Fontes
Oxford

O papel central que a agenda do clima terá na diplomacia do governo Lula (PT) ficou evidente desde a participação do presidente na COP27 (conferência da ONU sobre mudanças climáticas, em novembro de 2022, no Egito), logo após a eleição.

"Quero dizer que o Brasil está de volta. Está de volta para reatar os laços com o mundo", discursou o petista no evento, em que sugeriu uma cúpula de países da Amazônia e também se dispôs às Nações Unidas a ser anfitrião da COP30, em 2025.

Para Adriana Abdenur, diretora-executiva da Plataforma Cipó, instituto de pesquisa dedicado a questões de clima, governança e paz, sediar esses encontros é parte importante da reconstrução da agenda de política externa que o novo governo precisa fazer.

Retrato de Adriana em um lugar com decoração luxuosa, como a recepção de um hotel ou cassino
A socióloga Adriana Abdenur, diretora executiva da Plataforma Cipó, especializada em clima e relações exteriores - Gabrielle Alves/Divulgação

Ainda durante o pleito, a Plataforma Cipó coordenou a elaboração do documento "Clima e Estratégia Internacional: Novos Rumos para o Brasil". O trabalho é resultado de consultas com 70 atores de diversos setores da sociedade, incluindo grupos que tradicionalmente não têm muita voz nas discussões de política externa, como mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+ e instituições fora do eixo Brasília-Rio de Janeiro-São Paulo. O material foi entregue a Lula na COP27.

Abdenur, que integrou o grupo de trabalho de política externa da equipe de transição do governo, destaca, entre outros pontos, a urgência de o Brasil ratificar o Acordo de Escazú, que trata da proteção de defensores ambientais. O país assinou o texto em 2018, mas nunca fez a ratificação.

Outro tema que se impõe, diz a especialista, é formular políticas públicas que busquem a justiça climática —expressão que destaca que os impactos das mudanças no clima atingem de forma desproporcional certos grupos sociais, o que perpetua, entre outros problemas, o chamado racismo climático. Ambos os conceitos, muito em voga nas discussões internacionais, precisam ser aplicados também dentro do país, afirma.

Homens negros protestam usando cartazes, violão, faixas e um objeto que imita uma tocha
Protesto durante a COP27 pedindo reparação por perdas e danos e justiça climática, em Sharm el-Sheikh, no Egito - Mohammed Abed - 12.nov.2022/AFP

Na presidência do G20, grupo das maiores economias do mundo, que será assumida pelo Brasil em dezembro de 2023, Abdenur vê ainda a chance de o país liderar discussões sobre desenvolvimento sustentável e segurança alimentar —tópico que ganhou relevância com a Guerra da Ucrânia.

"O Brasil, que tem um papel propositivo historicamente nessa área, pode levar para o G20 não apenas as questões referentes à crise financeira e de endividamento dos países mais vulneráveis, mas também essas pautas substantivas", avalia Abdenur, que aponta também a necessidade de ampliação da participação da sociedade civil nesses debates.

Na primeira semana do novo governo, o Itamaraty anunciou a criação da Assessoria de Participação Social e Diversidade, diretamente subordinada ao ministro Mauro Vieira.

Como incluir o conceito de justiça climática no centro da estratégia internacional do Brasil, como defendido no documento da plataforma Cipó? O conceito de justiça climática é muito relevante tanto no plano doméstico quanto no internacional. É relevante que a gente avance no plano doméstico. A gente sabe que quem se beneficia mais dos recursos associados ao desenvolvimento, à ação climática e a outras áreas das políticas públicas são as elites, ao passo que os grupos que são mais expostos às mudanças climáticas e à destruição e degradação do meio ambiente são os grupos mais vulneráveis.

A pesquisa científica já identifica que as mulheres, os negros, as populações indígenas, os quilombolas, as populações LGBTI+, as pessoas portadoras de deficiências estão menos preparadas para lidar, por exemplo, com os eventos extremos climáticos e também têm muito menos acesso aos recursos que estão disponíveis, e que são muito escassos, para lidar com esses eventos.

É chegado o momento de lideranças no Brasil adotarem explicitamente o conceito de justiça climática, e também recortes que são relevantes, como o racismo climático. É um conceito que precisa ser incorporado não apenas no diagnóstico, mas na formulação de soluções.

Qual foi a proposta do GT de política externa no governo de transição para fortalecer os direitos indígenas como parte da agenda climática? É muito relevante que o Brasil priorize a ratificação do acordo regional sobre acesso à informação, participação pública e acesso à justiça em assuntos ambientais na América Latina e no Caribe, conhecido como Acordo de Escazú.

É um acordo que prevê não apenas maior transparência, mas também demanda que os países signatários invistam na defesa e na proteção dos defensores ambientais. A gente sabe que as comunidades indígenas estão sendo atacadas, sendo alvos de assassinatos e de outras formas de violência.

Outro tema muito relevante é o tema da consulta prévia. Quando a gente tem projetos de infraestrutura, sobretudo de grande porte, como rodovias, ferrovias e hidrelétricas, eles precisam ocorrer com consulta prévia. Isso está acordado em normas, por exemplo, da Organização Internacional do Trabalho.

A China é o principal mercado internacional de commodities brasileiras, como minério de ferro, carne e soja. Quais são as oportunidades e os desafios para assegurar uma agenda de compromissos sobre clima e meio ambiente do país asiático com o Brasil? Além da compra de commodities, há também os investimentos diretos que atores chineses fazem, por exemplo, em infraestrutura de transporte, de logística.

É preciso que o Brasil se engaje bilateralmente com a China para poder combater os crimes ambientais —e a demanda chinesa pelos produtos que estão pressionando a floresta é muito alta. É impossível que a gente tenha um avanço pleno nessa área sem ter uma conversa mais profunda com a China, não apenas com empresas, mas com o próprio governo.

Os Estados Unidos, maior rival geopolítico da China, já conseguiram alcançar uma declaração conjunta de compromissos sobre clima e meio ambiente. Isso pode servir como base de inspiração para o Brasil.

E como fomentar a agenda de soberania alimentar, considerando que a maior parte dos esforços do Itamaraty nos últimos anos foi dedicado a ampliar o mercado de commodities agrícolas no exterior? O desafio vai ser encontrar intersecções que passam pela agenda da agricultura de baixo carbono e pela cooperação em áreas em que o Brasil já detém bastante conhecimento. A Embrapa, entre outros atores, tem pesquisa para uma agricultura mais sustentável.

O desafio desse novo governo vai ser equilibrar os interesses de forma a manter um papel que seja interessante para o nosso crescimento e para a redistribuição da riqueza no Brasil e, para isso, o agro é absolutamente essencial, ele compõe uma parte significativa do nosso PIB. Mostrar inclusive para os atores do agro que a sustentabilidade passa a ser o valor agregado para uma nova competitividade lá fora.

A demanda por produtos agrícolas livres de desmatamento, de outros crimes ambientais e de violações aos direitos humanos cresceu muito, não apenas nos Estados Unidos, no Canadá, na Europa, mas também em outros países.

É muito importante também que o Brasil aproveite espaços regionais, como a Unasul [União de Nações Sul-Americanas], o Mercosul e a Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia, para fortalecer a agenda de segurança e soberania alimentar, de forma que os países da região possam se apoiar em um projeto de longo prazo e, ao mesmo tempo, que nós possamos ter, sim, uma agricultura voltada à exportação forte e justa.

As negociações de meio ambiente e clima estão cada vez mais complexas e, por outro lado, a capacidade técnica da atuação das delegações brasileiras nas negociações climáticas ficou comprometida nos últimos anos. Como resgatar a credibilidade técnica da delegação brasileira? A credibilidade do Itamaraty na área é muito forte, porque detém todo o histórico, uma memória institucional que precisa ser resgatada através dos seus quadros de diplomatas e também da rede de chancelaria.

O que é necessário agora é que o Itamaraty seja arejado, porque, pela defasagem da capacidade de engajamento para além da negociação de metas, hoje em dia é a sociedade civil no Brasil que puxa a agenda climática e ambiental.

A reconstrução do Ministério do Meio Ambiente e a construção do zero do Ministério dos Povos Indígenas partiram da sociedade civil. E um tema que é muito caro à sociedade civil é a ampliação da sua participação, através da reconstrução dos conselhos, mas também da criação de novos mecanismos.

Na sua opinião, quais deveriam ser os avanços na agenda climática e ambiental almejados pelo país à frente da presidência do G20 [a partir de dezembro] e no Brics [bloco de economias emergentes que também conta com Rússia, Índia, China e África do Sul]? O Brasil pode pensar numa agenda propositiva não apenas de forma a beneficiar a população brasileira, mas também propor reformas da governança global. O presidente Lula é um dos pouquíssimos chefes de Estado que têm a legitimidade e a capacidade de mobilizar outros países em desenvolvimento.

No G20, seria muito interessante que o Brasil levantasse a bandeira climática, mas com uma pegada dos países em desenvolvimento, ou seja, equilibrando mitigação, adaptação, perdas e danos e financiamento, mas, sobretudo, puxando a sardinha para o lado de desenvolvimento sustentável, inclusive da soberania e da segurança alimentar.

A gente vê que com a guerra na Ucrânia a segurança alimentar de muitos países foi afetada. Tem países africanos que dependiam quase que 100% da importação de trigo da Ucrânia e tiveram que recorrer a outros laços improvisados de cooperação. O Brasil, que tem um papel propositivo historicamente nessa área, pode levar para o G20 não apenas as questões referentes à crise financeira e de endividamento dos países mais vulneráveis, mas também essas pautas substantivas.

Qual é a importância dos eventos propostos por Lula para o Brasil na área do clima, como uma cúpula sobre a Amazônia no próximo ano e a COP30, conferência climática da ONU, em 2025? É muito importante que o Brasil volte a sediar eventos internacionais. Quem sedia um evento internacional ajuda a pautar. Existe uma cobrança muito grande para que o presidente Lula não apenas combata o desmatamento e outros crimes ambientais na Amazônia e no cerrado, mas que também assuma uma agenda propositiva.

E não há melhor forma de fazer isso do que chamar uma cúpula inédita na Amazônia onde se possa construir uma agenda propositiva não apenas para a política externa brasileira, mas também para a região.

Nós temos agora um momento muito interessante, de alinhamento relativo na maioria dos países da região. É uma oportunidade única no que diz respeito às relações entre o Brasil e a Colômbia, e também com o Chile, onde temos agora um governo progressista muito empenhado nessas pautas climáticas e ambientais.

Então dessa cúpula podem sair novas ideias. Uma nova oportunidade para o Brasil será a pauta da biodiversidade. O Brasil é o país mais biodiverso do mundo, e a Convenção da Diversidade Biológica recebe muito menos atenção política e recursos do que a convenção climática.


RAIO-X

Adriana Abdenur, 47

Com doutorado em sociologia do desenvolvimento pela Universidade Princeton (EUA), é cofundadora e diretora-executiva da Plataforma Cipó, instituto de pesquisa independente, com sede no Rio de Janeiro, liderado por mulheres e dedicado a questões de clima, governança e paz na América Latina e no Sul Global. Integra o Comitê de Políticas de Desenvolvimento das Nações Unidas e participou do grupo de trabalho de política externa do governo de transição do presidente Lula.


ENTENDA A SÉRIE

Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanhou também as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU realizada em novembro no Egito). O projeto tem o apoio da Open Society Foundations.

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