Descrição de chapéu Planeta em Transe desmatamento

Nenhum governo enfrentou a questão fundiária da Amazônia, diz advogada

Brenda Brito, do Imazon, defende campanhas para valorizar desmatamento zero

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Cristiane Fontes Marcelo Leite
Londres e São Paulo

A advogada Brenda Brito dedicou metade de sua vida ao movimento ambiental em defesa da floresta. Trabalha há duas décadas no Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), uma das mais férteis ONGs de pesquisa do Brasil, sediada em Belém, e hoje preside o conselho do Greenpeace no Brasil.

Para ela, o nó central da questão amazônica está na falta de destinação de áreas públicas florestadas. Não faltam leis e normas, mas seu cumprimento: "Um grande desafio, que até hoje nenhum dos governos conseguiu enfrentar de forma mais séria", afirma.

Isso vale, portanto, para os mandatos prévios do presidente Luiz Inácio da Silva (PT), de sua sucessora, Dilma Rousseff (PT), e mais ainda para Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL). De volta ao Planalto, o governo do petista nomeou como ministro da Agricultura o senador Carlos Fávaro (PSD-MT), que foi o relator favorável ao projeto de lei nº 510, conhecido como PL da Grilagem.

Mulher se apoia em cerca, com os braços cruzados, em um deque de madeira diante de um rio, cercado por árvores
Brenda Brito, pesquisadora associada do Imazon e presidente do conselho do Greenpeace Brasil - Ana Lu Rocha/Divulgação

"Desde 2006, há uma lei que indica o que se deve fazer", relembra Brenda Brito. "A gente não vende floresta pública. Mas essa lei vem sendo sistematicamente desrespeitada."

Além da questão fundiária, a advogada alerta nesta entrevista para a ausência de perspectivas de vida para a grande quantidade de jovens da Amazônia que não trabalham nem estudam. Ela defende um investimento em escolas profissionais e técnicas alinhadas com a bioeconomia e a economia de baixo carbono.

Um empecilho para soluções inovadoras, no entanto, está na incompreensão da opinião pública brasileira para o valor do desmatamento zero na Amazônia: "A sociedade opera na inércia da ditadura militar, olha para a floresta como um grande fardo que precisa ser derrubado e integrado com estrada".

Apenas um pequeno percentual das ações do Ministério Público Federal (MPF) contra o desmatamento na Amazônia resultou na punição de infratores nos últimos anos, segundo o Imazon. Como avançar na responsabilização de quem desmata ilegalmente os biomas brasileiros? Esse desafio não é de hoje. Quando comecei no Imazon, 20 anos atrás, foi com uma pesquisa exatamente sobre o tema. Nesse estudo mais recente, a gente está focando nas ações civis públicas de um programa específico do MPF, o Amazônia Protege. De 2017 até 2020, 8% das ações tiveram uma responsabilização determinada em primeira instância. Nos outros [92%], a maioria das decisões foi de casos extintos sem julgamento, mas muitos ainda em fase de recurso.

Acho importante dizer que tem também teses jurídicas novas trazidas pelo MPF nesse programa, como a questão de punir desmatadores sem ir a campo, baseando as provas em bancos de dados públicos, como Cadastro Ambiental Rural (CAR), e imagens de satélite, para aferir onde é que está o desmatamento. O que falta agora é a disseminação desse tipo de entendimento.

Vinte e nove por cento da Amazônia tem situação fundiária indefinida. Poderia nos explicar onde é que estão concentradas essas áreas e por quem e para quais atividades elas têm sido ocupadas? Num levantamento de 2021, tentamos responder essa pergunta sobre a situação fundiária definida na Amazônia e aquilo que ainda é incerto. A gente entende o incerto como aquilo de que não se consegue encontrar informação espacial nos bancos de dados públicos, do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], do Serviço Florestal, de órgãos estaduais de terra, com mais dificuldade, mas também da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e do ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade].

Quando se soma isso, dá em torno de 29% da Amazônia Legal. Grande parte dessa área está concentrada no Amazonas, em áreas que pertencem ao próprio estado, mas a gente também tem ali blocos do Pará e outros estados da Amazônia Legal. A gente também avaliou que, se considerar desmatamento de 2013 até 2021, 41% estão nessas áreas que não têm destinação. Para nós, é um indício de que essas áreas estão sendo ocupadas com a finalidade de apropriação do território, o que a gente chama de grilagem de terras.

Como se pode resolver a questão fundiária da Amazônia e oferecer mais segurança jurídica, como demandam produtores rurais, sem legitimar conflitos de terras e ilegalidades e priorizando a destinação social das terras públicas para comunidades tradicionais? Esse é um grande desafio, que até hoje nenhum dos governos conseguiu enfrentar de forma mais séria. O Brasil ainda não resolveu esse problema fundiário. Acho que é uma estratégia que o governo federal e os estados poderiam adotar. Realmente implementar a Lei de Gestão de Florestas Públicas e a Constituição e, de fato, vedar a privatização de florestas públicas.

Na nossa legislação, desde 2006, há uma lei que indica o que se deve fazer. Em florestas públicas, pode criar unidades de conservação, reconhecer territórios indígenas e de comunidades tradicionais e fazer concessões florestais para manejo. A gente não vende floresta pública. Mas essa lei vem sendo sistematicamente desrespeitada. Quando se olha o que está acontecendo com as florestas públicas que já foram mapeadas e estão, portanto, no cadastro nacional de florestas públicas, a gente vê sobreposição com títulos solicitados pelo Incra.

E de que forma o Cadastro Ambiental Rural, que é voltado para a regularização ambiental, pode auxiliar nesse processo, no avanço da agenda de regularização fundiária, e não para desvirtuá-la? O CAR, de uma certa forma, foi criado porque a gente nunca conseguiu no Brasil ter um cadastro de terras confiável. Você tem vários órgãos ao longo do tempo criando os seus próprios cadastros. Nunca deu certo, porque o problema é estrutural. Não adianta criar um cadastro novo como se ele estivesse separado da questão fundiária.

O CAR acabou piorando, porque ele é autodeclaratório, não tem monitoramento dos próprios órgãos fundiários. Quando as pessoas discutem validação de informações do CAR, estão pensando se tem Reserva Legal, Área de Proteção Permanente (APPs), mas sequer estão falando se aquela área deveria ou não ter CAR porque, de repente, é uma área pública.

Acho que tem uma camada mais complexa de discussão sobre validação do CAR que até hoje eu nem ouço falar. A gente deveria não só impedir o CAR em terra indígena e em unidade de conservação, mas também em florestas públicas não destinadas. Porque, se eu permito que as pessoas continuem fazendo o CAR, estou criando uma expectativa de que, em algum momento, aquela demanda será atendida.

Vocês do Imazon chegaram já a propor algo sobre essas diferentes bases de dados fundiários no país e como melhor integrá-las? A gente nunca fez uma proposta específica de integração. Acho que dá para chegar num cadastro, não sei se unificado, mas integrado, em que cada órgão tivesse a atribuição de compartilhar informações. Quando se olha a situação dos órgãos estaduais de terra, que têm atribuições de emitir títulos, e alguns já emitem há décadas, como é o caso do Pará, essas bases estão muito desorganizadas. Como vou ter um cadastro unificado se nem tenho toda a base digitalizada? Se muito daquilo está em papel, se muitos daqueles mapas vou precisar vetorizar. Tem um grande trabalho de organização que precisa ser feito e que precisa de investimento, em todos os estados da Amazônia e também no Incra.

O atual ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, foi o relator favorável ao projeto de lei nº 510, conhecido como PL da Grilagem. O que esperar da interlocução entre parlamentares e o novo governo em relação à tramitação desse projeto? Em relação ao posicionamento do então senador Carlos Fávaro, entendo que ali tinha um entendimento incorreto da legislação. Isso ficou evidente em audiências públicas de que participei. A legislação federal permite que pessoas que ocuparam a terra pública federal até 2011 possam ser regularizadas. Não é só até 2008, como muitos falam e como, em alguns momentos, vi o próprio relator repetindo.

A diferença é que quem ocupou após 2008 e até 2011 ainda pode ser regularizado, mas paga um valor um pouquinho maior. Ainda assim é baixo, mas digamos que paga um valor um pouquinho maior que aquela pessoa que ocupou até 2008, quando é um imóvel acima de cem hectares. Acho que esse foi um problema que a gente teve na discussão sobre a mudança da lei nos últimos anos, porque se assumia, muitas vezes, que o problema era a legislação. O problema não é a legislação.

O Programa Municípios Verdes do Pará [PMV], que já foi o maior projeto do Fundo Amazônia e do qual o Imazon participou ativamente, tinha como meta desmatamento zero líquido a partir de 2020. Em 2018, tivemos um novo governo eleito no estado, o programa foi descontinuado e, no ano passado, mais de 4.000 km de florestas foram desmatados. O que houve com a política de desmatamento no Pará e com o modelo de governança estabelecido pelo PMV? Acho que o PMV teve sucesso naquela fase mais áurea da redução do desmatamento, que foi até 2012, quando de fato foi construído um legado interessante de capacitação dos municípios, de ter mais atores olhando para a questão do desmatamento, entendendo melhor os dados. Foi feito um esforço ali de dar mais condições para que os municípios operassem. Mas acho que, de uma certa forma, é muito difícil para qualquer estado conseguir manter uma política de redução de desmatamento quando você não tem uma parceria com o governo federal.

Mas o que você comentaria sobre a atual política de combate ao desmatamento e a meta climática do Pará? O modelo lembra um pouco o PMV, mas tem diferenças. Hoje a gente chama de Territórios Sustentáveis. Não é mais o município, faz-se um recorte diferenciado dos territórios. Mas a gente não vê, por exemplo, o modelo de governança como havia no PMV, em que você tinha a cada três meses o comitê gestor se reunindo para avaliar o que estava acontecendo, refletir e ter lições aprendidas.

Por mais que pudesse ter sido aprimorada a governança do PMV, e tem várias críticas válidas sobre a falta de participação de mais movimentos sociais, da agricultura familiar, acho que tinha pelo menos um modelo de governança. Não vejo isso no Territórios Sustentáveis. Acho que o Pará é um dos únicos estados, nesses últimos quatro anos, que publicou alguma meta de redução de desmatamento. No período do PMV, todos os estados tinham aquele plano de combate ao desmatamento estadual, porque era um requisito do Fundo Amazônia para que pudessem acessar recursos.

Não faz sentido a gente ter uma meta de um estado, que é o que mais desmata na Amazônia, dizendo que vai chegar em 2030 com 1.500 km² de desmatamento, e essa é a meta do Pará. E, quando a gente olha para a região da APA Triunfo do Xingu, o desmatamento lá nos últimos anos cresceu mais de 50%. Essa é uma região que, desde o início do governo Helder [Barbalho, MDB], se tem trabalhado muito com regulação ambiental e fundiária, em campo. Isso mostra que tem alguma coisa ali que não está funcionando tão bem.

Áreas de desmatamento na fronteira entre a floresta amazônica e o cerrado, em Nova Xavantina, no Mato Grosso - Amanda Perobelli - 28.jul.2021/Reuters

A Amazônia tem alguns dos piores indicadores sociais do país. O que os estudos Amazônia 2030 revelam de novo sobre isso? A iniciativa Amazônia 2030, que tem o Imazon e várias instituições, como a CPI [Climate Policy Initiative do Brasil], a PUC-Rio, Um Mundo Que Queremos, é um projeto que se dispôs a olhar para temas mais específicos e com uma abrangência maior que a ambiental, olhando mais para a questão social. Para mim, um dos dados mais fortes é a questão de trabalho e jovens.

Há uma proporção muito grande, muito maior do que no resto do Brasil, de jovens entre 18 e 25 anos que não estudam e não trabalham, não têm perspectiva. Isso é muito sério, porque a gente está perdendo a nossa juventude, não está conseguindo dar opções de vida a essas pessoas. E esse desalento tende a contribuir com várias questões negativas, como envolvimento com criminalidade. Se tiver um investimento em escolas profissionais, escolas técnicas, alinhadas com a questão de bioeconomia, economia de baixo carbono, isso pode ser um ganha-ganha para todo mundo.

Movimentos como Extinction Rebellion, Just Stop Oil e Jovens Pelo Clima têm estado muito mais presentes que o Greenpeace, por exemplo, em protestos nas ruas e atos de desobediência civil. O ativismo do Greenpeace está em crise? O que se discute sobre isso aqui no Greenpeace Brasil? Sou presidente do Conselho do Greenpeace Brasil. Acho que, diante da urgência da emergência climática, é absolutamente natural que haja outros movimentos surgindo. A gente precisa que essa pressão seja muito maior e que venha de todos os lados. Precisa do cara do mercado financeiro ativista, do professor ativista, do cientista ativista.

Acho que o Greenpeace Brasil, assim como os outros escritórios, continua tendo uma atuação relevante, de fazer as investigações que precisam ser feitas e trazer as questões para a opinião pública. Hoje mudou um pouco a forma como se faz ativismo. Muitas vezes, é trazer os influenciadores, é levar temas à imprensa.

A sociedade brasileira, como um todo, já tem uma boa compreensão do que significa desmatamento zero no Brasil, ou isso deveria ser também uma frente de atuação da sociedade civil e do governo? Não tem. A sociedade opera na inércia da ditadura militar, olha para a floresta como um grande fardo que precisa ser derrubado e integrado com estrada. Acho que a campanha publicitária que foi feita naquela época foi tão forte que ainda está na cabeça de todo mundo. Se você anda no interior e conversa com as pessoas, essa é a lógica. Tem de haver uma campanha tão ou mais forte do que teve naquela época, quando você tinha todas as revistas estampando aquelas imagens horrorosas, que são parecidas com está acontecendo hoje no Amazonas. Tem que ter isso todo dia, tem que ter na televisão, no WhatsApp, sei lá onde, dizendo: floresta conservada, é preciso valorizar, e tal. A gente vai precisar de uma campanha insistente e persistente. Pode ter apoio da sociedade civil, mas se vier do governo, melhor ainda, para de fato virar essa chave de que a gente precisa manter a floresta em pé.


RAIO-X

Brenda Brito, 40

Natural de Belém, é advogada, com mestrado e doutorado em Ciência do Direito pela Universidade de Stanford (EUA). Atua há mais de 20 anos para o aprimoramento de políticas ambientais e fundiárias para a conservação e redução do desmatamento na Amazônia. Pesquisadora associada do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), instituição não governamental cuja missão é promover a conservação e o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Participa da coordenação colegiada do Observatório do Clima (OC), rede formada por mais de 70 instituições da sociedade civil, e é presidente do conselho do Greenpeace Brasil.


ENTENDA A SÉRIE

Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanhou também as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU realizada em novembro no Egito). O projeto tem o apoio da Open Society Foundations.

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