Plantas 'professoras' ensinam a nos relacionar com a floresta, diz antropólogo

Após conviver com os ashaninkas, Jeremy Narby diz que tabaco e ayahuasca são fontes de conhecimento

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Cristiane Fontes Marcelo Leite
Oxford e São Paulo

"Eu não pensava ter me transformado ‘realmente’ em onça de maneira mensurável. Tinha mais uma memória corporal intensa da impressão de ‘ser um felino’, que eu podia convocar à vontade e utilizar como fonte de força e de coragem." Jeremy Narby, antropólogo canadense radicado na Suíça ouviu essa descrição de um curandeiro peruano, Carlos Perez, e a tomou com ceticismo, como conta em seu último livro.

Primeiro, por causa de sua formação científica anterior, desencantada, materialista. Depois, porque Perez narrava uma alteração de consciência deflagrada por tabaco, e não pelas plantas (chacrona e cipó-mariri) usadas para preparar o chá psicoativo ayahuasca, este sim reconhecido pela neurociência estabelecida como um poderoso psicodélico.

Tal efeito do tabaco ingerido, desconhecido por ocidentais que o fumam, foi uma das várias pistas que levaram Narby, em décadas de convívio com os ashaninkas, a se convencer de que este e outros povos da Amazônia têm muito a ensinar para a ciência.

Foto preto e branca de home em área de floresta
O antropólogo canadense Jeremy Narby - Pauline Deschamps/Acervo Selvagem Ciclo de Estudos/Divulgação

De resto, não só os indígenas, mas igualmente as "plantas professoras" como tabaco, chacrona e mariri. No entendimento deles, os vegetais são dotados de espírito e inteligência, são sujeitos e não apenas objetos para se conhecer e explorar.

"As sociedades indígenas nos oferecem maneiras diferentes de habitar a terra: mostram que é possível ser humano e, ao mesmo tempo, ter uma abordagem diferente daquela ideia de que a natureza é essa coisa que você pode usar e esgotar infinitamente, que parece estar bem ao centro da crise da biodiversidade."

"Eu queria provar que eles usavam seus recursos racionalmente e que detinham todo tipo de conhecimentos sobre a floresta tropical, as plantas e os animais", conta Narby nesta entrevista. Foi quando os ashaninkas lhe disseram que só teria uma compreensão verdadeira desse saber depois de tomar ayahuasca, e ele topou.

Cipó retorcido
Cipó-mariri, usado para fazer o chá de ayahuasca, em área da floresta amazônica da divisa de Mato Grosso e Pará - Eduardo Knapp - 10.dez.2022/Folhapress

"Minha visão de mundo desabou diante dos meus olhos, porque comecei a ver coisas que achava que não existissem", diz ele, que participou em outubro do evento Plantas Mestras, realizado na Casa França Brasil.

Correndo o risco de perder credibilidade como cientista social, a partir dessa transformação Narby se engajou na organização suíça Nouvelle Planète (Novo Planeta). O foco da ONG é levantar fundos para apoiar projetos indígenas e proteger suas terras.

Em três décadas a entidade conseguiu recursos para preservar 60 mil km2, cerca de 1% da floresta amazônica. Uma contribuição nada desprezível para conter emissões de carbono e, assim, combater o aquecimento global e a crise do clima —em comparação, no governo Bolsonaro pereceram em torno de 45 mil km2 só na Amazônia, sem contar o cerrado e outros biomas.

Em paralelo, o antropólogo seguiu publicando artigos e livros, como "A Serpente Cósmica, o DNA e a Origem do Saber" (Dantes Editora, 2018). Sua obra mais recente em português é "Plantas Mestras: Tabaco e Ayahuasca" (Dantes Editora, 2022), em coautoria com Rafael Chanchari Pizuri. O próximo, sobre cânabis, tratará de "todas as incompreensões que cercam a planta e suas potencialidades".

Por que tabaco e ayahuasca são considerados "plantas professoras" pelos povos indígenas da Amazônia? Meu entendimento do que seja uma planta professora se baseia no que os amazônidas explicaram para mim e para os outros. Plantas da Amazônia como o tabaco ou a ayahuasca são o que os cientistas podem chamar de plantas psicoativas. Elas podem se tornar professoras quando uma pessoa as ingere e, em seguida, presta atenção às experiências que seu corpo e sua mente têm após a ingestão. Quando ingerimos essas plantas, temos certas experiências que os cientistas chamariam de consciência modificada, ou estados alterados de consciência.

Os povos da Amazônia —os indígenas amazônicos— consideram que as plantas e os animais possuem uma forma de inteligência. Se pensarmos nas plantas que podem ser encontradas na floresta tropical, algumas se comunicam mais que outras. Algumas plantas são mais falantes, digamos, e as plantas que mais se comunicam são essas plantas professoras.

A maneira de aprender com essas plantas [professoras] é fazer uma decocção da casca e a planta vai influenciar seus sonhos. Então você presta atenção nos seus sonhos, e a informação transmitida nesses sonhos é considerada um ensinamento da planta. Porém, isso é algo pouco estudado pela ciência.

O sr. já disse que sua experiência com a comunidade Ashaninka Quirishari mudou sua vida. Por quê? Como essa experiência e a ayahuasca alteraram sua visão de mundo? Eu vivi com o povo ashaninka numa comunidade chamada Quirishari no meio da Amazônia peruana na década de 1980. Na época, eu era apenas um sujeito ocidental bastante comum.

O Banco Mundial e vários organismos ligados ao desenvolvimento internacional financiavam o confisco de territórios indígenas em nome do desenvolvimento, argumentando que essas pessoas não sabiam usar seus recursos de maneira racional. Eu queria provar que eles usavam seus recursos racionalmente e que detinham todo tipo de conhecimentos sobre a floresta, as plantas e os animais.

Homem de pé mostra pedaço de tecido colorido para outro homem, sentado em uma poltrona. Os dois estão cercados de pessoas sentadas em sala.
O líder indígena Ailton Krenak (esq.) participa do evento Plantas Mestras, do Selvagem Ciclo, no Rio de Janeiro - Mariana Rotilli

Estava estudando os usos racionais da floresta tropical pelos ashaninkas, mas eles me disseram algo bem no centro de seu sistema de conhecimento: "Irmão Jeremy, se você quiser entender todas essas questões, e se quiser entender como sabemos o que sabemos sobre as plantas, você tem de beber ayahuasca. É a televisão da floresta. Ela vai lhe mostrar imagens e você vai aprender coisas".

Eu sabia que levar os alucinógenos indígenas muito a sério era perigoso para minha carreira no campo da antropologia. Carlos Castañeda, Michael Harner e vários outros foram praticamente excomungados da profissão. Ainda assim, achei que seria uma demonstração de cortesia intercultural, já que iria importunar as pessoas com perguntas sobre o que sabiam sobre as plantas.

Após dez minutos de experiência [com ayahuasca], minha visão de mundo desabou diante dos meus olhos, porque comecei a ver coisas que achava que não existissem. Enormes serpentes fluorescentes que começaram a me explicar várias coisas, a começar pelo fato de que eu era apenas um ser humano minúsculo.

Percebi isso olhando para aquelas serpentes impressionantes, poderosas e assustadoras. Alucinações, talvez, mas tão detalhadas e poderosas que faziam a realidade comum parecer distante e irrelevante. Aquela experiência foi como tirar os óculos. Pude perceber que as pessoas têm uma maneira comum de ver as coisas que é limitada.

Em termos práticos, o que podemos aprender com os povos indígenas para evitar os piores resultados da crise climática? As sociedades indígenas nos oferecem maneiras diferentes de habitar a Terra: mostram que é possível ser humano e, ao mesmo tempo, ter uma abordagem diferente daquela ideia de que a natureza é essa coisa que você pode usar e esgotar infinitamente, que parece estar bem ao centro da crise da biodiversidade.

Algumas pessoas argumentam que, devido à pequena escala, os indígenas podem fazer isso, mas uma sociedade de grande escala teria mais dificuldade. Bem, isso é possível, mas ainda acho que o verdadeiro valor profundo das culturas indígenas está precisamente nessa compreensão diferente da natureza.

Você vai para a Amazônia e pergunta às pessoas: "Como você se refere a tudo o que não é humano na sua língua?". Elas dizem que não veem as coisas a partir desse conceito. Na verdade, acreditam que todas as outras espécies são pessoas como nós.

É importante, neste momento, começar a pensar em como se relacionar com as outras espécies. Se definirmos o mundo inteiro como apenas um monte de coisas, obviamente é fácil explorá-las, mas é mais difícil ter relações com elas. O que as culturas indígenas podem nos mostrar? Como tratar o resto do mundo como sua família, como se relacionar com os outros [seres] e tratá-los como pessoas. Nós, os ocidentais, as pessoas industriais, estamos apenas começando a pensar sobre isso.

O sr. também afirma que a ciência ocidental e os conhecimentos indígenas não são incompatíveis. Aqui no Brasil, algumas iniciativas de pesquisa começam a promover a inclusão de cientistas indígenas. Também temos um número crescente de indígenas nas universidades. Em sua opinião, como seria uma "polinização cruzada" desses sistemas de conhecimento? Acho esse aspecto do Brasil muito empolgante. Nos últimos 25, 27 anos, tenho falado e escrito sobre a compatibilidade entre a ciência e sistemas indígenas de conhecimento, mas, quando você fala para um público na França sobre algo assim, é uma proposta um pouco abstrata.

Já no Brasil, notei que esse tema realmente mexe com as pessoas muito mais rapidamente: o Brasil tem ciência avançada, mas também tem povos indígenas reais. Isso também é verdade num país como o Canadá. Já começamos a ver diálogos assim no Brasil e no Canadá.

No Canadá, às vezes isso tem a ver com questões concretas, como a saúde de um rio. Como podemos tornar esse ou aquele rio mais limpo e habitável? A ideia é reunir ecologistas e anciãos indígenas, e eles começam a trabalhar juntos num projeto específico.

Só para colocar as coisas em perspectiva: na década de 1990, uma equipe europeia realizou um estudo na Amazônia peruana, e eles cercaram um lote de 10 metros por 2 metros no meio da floresta tropical, ou seja, escolheram um lugar na floresta e delimitaram um terreno de 20 m2. Então, convidaram pessoas do povo ashaninka para caminhar por aqueles 20 metros quadrados e identificar as plantas —e aquelas pessoas conseguiram fazer isso, identificaram algo como 97% das plantas.

Os vínculos entre crimes ambientais e crime organizado estão crescendo e se tornando um problema muito sério na Bacia Amazônica. Como isso afeta o povo ashaninka, no Peru, e como enfrentar esse problema? Essa é difícil. Na Colômbia e no Brasil, há muito tempo ocorrem assassinatos de lideranças indígenas, mas, no Peru, esse é um fenômeno relativamente recente. Não se ouvia falar disso há 10 ou 15 anos, mas agora começou a acontecer.

Líderes ashaninkas foram assassinados. Líderes shipibos foram assassinados. Isso tem acontecido cada vez mais, e é algo extremamente lamentável. Eles sentem que não são considerados pelo Estado, pelas autoridades, pelas empresas petrolíferas, pelos criminosos que vêm e os matam, pelos madeireiros ou pelos garimpeiros. Existe todo um sistema contra eles, e é uma grave falta de responsabilidade.

Não é apenas uma questão do povo ashaninka ou de uma área onde houve algum desmatamento ilegal. Trata-se de como o país inteiro é administrado. É um problema muito profundo que, claramente, tem raízes na história colonial. Ou seja, simplesmente culpar o moderno Estado peruano não nos leva às raízes do problema. É difícil, mas ainda acho que um dos caminhos a seguir é valorizar o conhecimento dos indígenas, dos próprios indígenas, e dos lugares onde vivem.

Como você tem conectado seu trabalho na ONG Nouvelle Planète com os tópicos sobre os quais falamos nesta entrevista? Nosso trabalho é ouvir os indígenas e apoiar suas iniciativas. Há 33 anos, arrecado recursos para a demarcação e titulação de terras indígenas. O argumento que usamos aqui na Europa é dizer que a melhor maneira de proteger a floresta tropical é confiá-la a seus habitantes indígenas, que sabem como usá-la sem destruí-la.

O mesmo se aplica aos programas de educação bilíngues e interculturais. Os indígenas dizem: "Precisamos educar nossos filhos em nossa língua materna e em espanhol ou português. Precisamos ensinar-lhes conhecimentos indígenas e ciência. Se nossas culturas vão sobreviver, precisamos de programas de educação bilíngues e interculturais". Então, isso é uma coisa que apoiamos e para a qual levantamos fundos há 27 anos.

Até agora, essa pequena ONG já financiou a demarcação de 6 milhões de hectares, o que equivale a uma vez e meia o tamanho da Suíça, é [cerca de] 1% de toda a floresta amazônica.


RAIO-X

Jeremy Narby, 63

Antropólogo canadense, há 33 anos trabalha como diretor de projetos amazônicos da ONG suíça Nouvelle Planète (Novo Planeta), arrecadando recursos para projetos de povos indígenas, principalmente na Amazônia peruana. Teve editado no Brasil, em 2022, o livro "Plantas Mestras: Tabaco e Ayahuasca" (Dantes Editora), escrito com Rafael Chanchari Pizuri.


ENTENDA A SÉRIE

Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanhou também as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU realizada em novembro no Egito). O projeto tem o apoio da Open Society Foundations.

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