Seca extrema no Iraque manda um alerta climático vindo do berço da civilização

Região, que já foi conhecida como Crescente Fértil, hoje sofre com falta de água e desertificação

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Alissa J. Rubin
Albu Jumaa (Iraque) | The New York Times

Todo estudante do ensino fundamental aprende o nome dessa terra: Mesopotâmia. O Crescente Fértil. O berço da civilização.

O nome em si, Mesopotâmia, significa "terra entre rios". É onde foi inventada a roda, onde surgiu a irrigação e onde emergiu o primeiro sistema conhecido de escrita. Segundo alguns estudiosos, os rios desta terra alimentaram os célebres jardins suspensos da Babilônia e convergiam em um lugar descrito na Bíblia como o Jardim do Éden.

Hoje, em alguns povoados próximos do rio Eufrates, resta tão pouca água que as famílias desmontam suas casas, tijolo por tijolo, carregam os tijolos em picapes e os levam embora.

"Você não acreditaria se eu dissesse isso agora, mas este lugar já foi cheio de água", disse o xeque Adnan al Sahlani, professor de ciências no sul do Iraque, perto de Naseriyah, a alguns quilômetros de distância da cidade de Ur, descrita no Antigo Testamento como sendo onde vivia o profeta Abrãao.

Hoje em dia, ele disse, "não há água em nenhum lugar". As pessoas que restaram "estão sofrendo uma morte prolongada."

Pessoas circulam na rua, perto de outra pessoa que está sentada na calçada, em paisagem acinzentada pela passagem de tempestade de areia
Tempestade de areia açoita a área central de Bagdá, no Iraque. Quase 40% do país foi tomado pelas areais do deserto - Bryan Denton/The New York Times

Não é preciso voltar até os tempos bíblicos para encontrar um Iraque mais verdejante. Ainda no século 20 a cidade de Basra, no sul do país, era conhecida como a Veneza do Oriente por seus canais, percorridos por barcos semelhantes a gôndolas que abriam caminho entre bairros residenciais.

De fato, por boa parte de sua história o Crescente Fértil —que, segundo definições frequentes, abrangia partes dos atuais Iraque, Israel, Líbano, Síria, Turquia, Irã, Cisjordânia e Faixa de Gaza— não carecia de água, tanto que inspirou artistas e escritores que ao longo de séculos retrataram a região como uma terra antiga e fértil. As inundações eram comuns na primavera, e o arroz, uma das variedades alimentares cujo cultivo exige mais água, foi cultivado ali por mais de 2.000 anos.

Hoje, porém, quase 40% do Iraque é dominado por areias desérticas trazidas pelos ventos e que devoram dezenas de milhares de acres de terra arável a cada ano.

Cientistas atribuem a culpa à mudança climática e à desertificação. Outros fatores responsáveis são a governança fraca e a dependência contínua de técnicas de irrigação que desperdiçam água e que datam de milênios atrás, desde os tempos sumérios.

Uma disputa acirrada em torno da água intensifica a falta de água sofrida por dezenas de milhões de pessoas na região.

Outro problema é compartilhado por grandes partes do mundo: uma população crescente cujas exigências de água continuam a subir, tanto em função do número de pessoas quanto, em muitos lugares, da elevação dos padrões de vida, que aumentam o consumo individual.

As consequências perversas são visíveis em toda parte no Iraque, criando tensões na sociedade, alimentando choques mortíferos entre povoados, levando ao deslocamento de milhares de pessoas todos os anos, encorajando extremistas e deixando extensões cada vez maiores de terra parecendo uma paisagem lunar árida.

Rios e lençóis freáticos poluídos e exauridos estão levando a surtos de cólera, tifo e hepatite A. O avanço das areias do deserto engole terras agrícolas, provocando um êxodo forçado para as cidades. O nível da água nos rios e canais caiu tanto que militantes do grupo Estado Islâmico os atravessam sem dificuldade para atacar vilarejos e postos de segurança. Piscicultores ameaçam fiscais do governo que tentam fechar suas operações por violarem as restrições ao uso de água.

Até o subsolo do país está mudando.

Em muitas áreas, a água bombeada do subsolo é salgada demais para o consumo humano, em decorrência da redução do fluxo de água, do escoamento de agrotóxicos e de dejetos não tratados. "Nem sequer minhas vacas conseguem beber essa água", disse um agricultor.

Homem em trajes típicos abre a porta de um carro vermelho para jogar água no rosto. Ao fundo, há um canal com uma estação de bombeamento de água ilegal
Xeque Adnan al Sahlani joga água no rosto para se refrescar perto de uma estação de bombeamento de água ilegal que, segundo ele, permitiu que agricultores coletassem mais água do que o permitido do canal, deixando pouco para quem está mais além no fluxo do rio - Bryan Denton/The New York Times

O Iraque e países vizinhos representam um aviso inconfundível ao restante do Oriente Médio e algumas outras regiões do mundo.

"Devido às vulnerabilidades dessa região, uma das que corre mais perigo no mundo, ela é um dos primeiros lugares que vai literalmente sucumbir de modo extremo sob o efeito da mudança climática", disse Charles Iceland, diretor de segurança hídrica da ONG World Resources Institute.

A água consumida pelos iraquianos vem do governo em tonéis de plástico vermelho. Cada família recebe cerca de 160 galões por mês. Mesmo quando usada com parcimônia, ela mal dura uma semana no calor, disse Sahlani, que vive no povoado de Albu Jumaa.

Ainda nos anos 1970 e 1980, o ministério da Água do Iraque construiu açudes e barragens para conter a imensa inundação anual decorrente das chuvas do inverno e do derretimento da neve dos Montes Tauro, as nascentes dos rios Tigre e Eufrates.

Vestígios do passado mais verde do Iraque ainda são visíveis hoje a cada primavera. No deserto de Anbar, uma chuvarada breve de inverno é capaz de cobrir de verde os vales rasos e deixá-los pontilhados de flores. A água ainda alimenta árvores nas margens estreitas dos rios Tigre e Eufrates, com faixas de campos verdes de cada lado.

Mas mesmo essas faixas encolheram nas últimas décadas.

Desde 1974 a Turquia construiu 22 barragens, hidrelétricas e projetos de irrigação nos rios Tigre e Eufrates.

No início dos anos 2000, o Irã começou a construir mais de uma dúzia de barragens menores e túneis em afluentes do Tigre, devastando províncias iraquianas como Diyala, que dez anos apenas atrás era conhecida por seus pêssegos, damascos, laranjas e tâmaras. Os afluentes que vêm do Irã são a única fonte de água na província, exceto pela chuva, que vem ficando mais escassa.

O impacto tem sido drástico: segundo estatísticas do ministério iraquiano da Água, desde que começou a construção intensiva de barragens, nos anos 1970, a água que chega ao país pelo rio Eufrates diminuiu em quase 50%, e a que vem do rio Tigre em um terço.

Hashem al-Kinani e sua família têm sentido as mudanças em primeira mão. Durante gerações eles cultivarem 20 acres de terra a leste de Bagdá, na divisa com Diyala, enfrentando uma dificuldade depois de outra.

Primeiro a invasão americana e a derrubada de Saddam Hussein reduziram fortemente o apoio dado pelo Estado aos agricultores. Depois, em 2006, a Al Qaeda chegou a matou muitos homens da região, jogando seus corpos decapitados nas valetas. Hashem perdeu um tio, e a casa da família foi atingida por uma bomba da Al Qaeda.

Para agravar a situação, as chuvas ficaram mais irregulares e foram diminuindo pouco a pouco. Quando as barragens iranianas foram ativadas, a água do rio ficou escassa demais para permitir o cultivo de frutas.

Em todo o mundo, segundo as Nações Unidas, quase 900 rios, lagos e aquíferos são compartilhados por mais de um país. Embora exista um tratado que rege sua utilização, menos de metade dos países do mundo o ratificaram. Alguns países que se fazem notar por sua ausência da lista são países situados rio acima como a Turquia, Irã e China.

Em 2021 o ministério iraquiano da Água ameaçou levar o Irã ao Tribunal Internacional de Justiça por roubar sua água. Mas o governo iraquiano, dominado por xiitas e que tem relações próximas com os governantes do Iraque, abandonou o assunto.

Agora, a água que flui para o leste do Iraque foi reduzida a tal ponto que boa parte das planícies de inundação viraram campos ressecados. Em alguns trechos dos rios e canais de irrigação do Iraque o nível da água é tão baixo que eles mal conseguem diluir o esgoto que é jogado neles.

O próprio crescimento do Iraque agravou a situação: enquanto a água minguou, a população cresceu, passando de 11,6 milhões em 1975 para 44 milhões hoje.

Os pedidos feitos à Turquia para que compartilhe mais água têm sido em grande medida ignorados.

No verão de 2022, no auge da seca do ano passado, o embaixador da Turquia no Iraque reagiu aos pedidos iraquianos de mais água dizendo que os iraquianos desperdiçam a água e pedindo que o governo iraquiano adotasse "medidas imediatas para conter o desperdício". Este ano, quando chegou um pedido semelhante, a Turquia compartilhou mais água por um mês, mas depois voltou a reduzir o fluxo.

Modernizar as técnicas agrícolas ultrapassadas usadas no Iraque —que, segundo um estudo realizado para o ministério da Água iraquiano, desperdiçam até 70% da água— é imprescindível. Mas não tem sido fácil persuadir os agricultores a mudarem suas práticas.

Menino olha para o lado em meio a vila coberta por areia cinzenta e cerca por casas precárias
Menino residente de al-Najim, uma pequena vila agrícola ao norte de Nasiriyah, no Iraque, que foi inundada por dunas de areia - Bryan Denton/The New York Times

Passada a área urbana do norte de Naseriyah, com suas pequenas oficinas mecânicas e barracas de verduras, a terra se esvazia. Nuvens de chuva se formam no final da tarde, mas depois se dispersam sem deixar cair um pingo de água. Tufos de gramíneas amareladas no final de junho (no inverno do hemisfério norte) são sinais de que não faz tanto tempo se cultivavam plantações aqui.

O vento começa cedo todas as manhãs e sopra sem parar até o anoitecer. Ele arranca a camada superior do solo, ressecando a terra até que tudo o que resta é o pó que se amontoa sobre as dunas rapidamente crescentes.

A pequena distância da rodovia, avançando mais no deserto, fica Al Najim, um povoado que os ventos estão varrendo do mapa. Trinta anos atrás ele tinha 5.000 habitantes. Hoje restam apenas 80. A temperatura estava em torno de 50ºC.

O xeque Muhammad Ajil Falghus, chefe da tribo Najim, nasceu no vilarejo. "A terra era boa, o solo era bom", ele explicou. Até o início dos anos 2000, falou, "plantávamos trigo e cevada, milho e trevos."

Hoje a única coisa que ainda cresce no lugar são grupinhos de tamargueiros plantados para barrar o avanço da areia.

"Estamos vivendo no limite da vida", disse o xeque. "Não há agricultura, não há mais plantio possível. Isto é o fim da linha, o fim da vida. Esperamos por uma solução de Deus ou das pessoas boas."

Tradução de Clara Allain

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