Uso criterioso do fogo no cerrado pode ajudar a prevenir grandes incêndios; entenda

Método alia prevenção de desastres, técnicas tradicionais e conservação da biodiversidade

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Cavalcante (GO)

Com um isqueiro e um galão de combustível, o brigadista Rogério Borges põe fogo em um trecho da Reserva Natural da Serra do Tombador, no noroeste de Goiás. Em linha reta, ele caminha fazendo uma carreira com o chamado pinga-fogo, uma espécie de "regador" que tem o bico torcido, feito especialmente para essa tarefa.

"Esse 'nó' é o que faz o fogo não subir para dentro do pinga-fogo", explica ele, indumentado dos pés à cabeça com equipamentos de proteção.

As maioria das chamas são pequenas, mas algumas chegam à altura de um adulto. Elas lambem a vegetação rasteira do coração do cerrado e avançam rapidamente sobre o capim amarelado por meses de seca.

Atento ao avanço do fogo, Borges observa enquanto o calor que sobe do solo aumenta e multiplica aquele que está no ar mesmo no final da tarde. Na sequência, acende outro rastro, no lado oposto ao primeiro. O trecho de vegetação é cercado por duas estradas de chão e as chamas não atravessam esse limite.

Com roupas protetivas, quatro brigadistas fazem simulação de queima controlada em área de cerrado. Um deles vai à frente, acendendo uma linha de fogo, e três aguardam mais atrás
Brigadistas acendem o fogo para simulação de queima controlada em área da Reserva Natural Serra do Tombador, RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural) da Fundação Grupo Boticário, em Cavalcante (GO) - Jéssica Maes/Folhapress

Enquanto isso, outros dois homens, igualmente concentrados, empurram as duas linhas de fogo uma em direção à outra; um terceiro anda olhando para o chão e vai extinguindo com água pequenos focos que teimam em seguir outro caminho.

Em cerca de 40 minutos, as duas frentes se encontram e, sem mais ter material para queimar, apagam sozinhas.

A cena inusitada é uma simulação de queima controlada: prática usada para eliminar a matéria orgânica acumulada no solo e, assim, evitar que focos de incêndio ganhem força e se alastrem com facilidade. Esse tipo de ação só pode ser feita de forma legal perto do período chuvoso, quando o solo ainda está úmido, exceto quando autorizada, de forma excepcional, para fins de treinamento e simulações.

No caso relatado, os brigadistas demonstravam o trabalho do manejo criterioso do fogo realizado na reserva privada que é propriedade da Fundação Grupo Boticário. A área de 8.730 hectares fica em Cavalcante (GO), cidade que tem 85% do território coberto por remanescentes nativos do cerrado.

A interação do cerrado com o fogo

O bioma é considerado a savana mais biodiversa do mundo –estima-se que tenha mais de 12 mil espécies de plantas, sendo que 4.000 são endêmicas, ou seja, só existem ali. Essa variedade se deve à multiplicidade de paisagens (ou fitofisionomias) que ele abriga, como o cerrado típico (com árvores baixas e arbustos), campos (cobertos por capins), veredas (de solo úmido, formadas por capins, arbustos e palmeiras do buriti) e matas de galeria (formações florestais que margeiam córregos e pequenos rios).

Ao longo de milhares de anos, essa vegetação evoluiu junto com o fogo eventual, causado por raios na estação chuvosa. Assim, não só as espécies são adaptadas para resistir às chamas como algumas precisam delas para o seu desenvolvimento.

Esse conhecimento é parte das práticas ancestrais de povos indígenas e quilombolas, que usam queimas pontuais para limpar de áreas de cultivo, estimular a rebrota e a frutificação de algumas plantas e prevenir incêndios. É esse tipo de dinâmica que o manejo integrado do fogo (ou MIF, como é conhecido) busca reproduzir.

"A grande questão do manejo integrado do fogo é que não é um manejo só de prevenção", explica Alessandra Fidelis, bióloga e professora da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Rio Claro que desde 2011 pesquisa o efeito dos incêndios sobre o cerrado na Reserva Natural Serra do Tombador.

Ela afirma que evitar e controlar grandes incêndios é apenas uma das frentes da técnica. "A outra é cultural: resgatar o conhecimento do uso do fogo, que para mim é uma das partes mais importantes. A terceira frente é a ecologia do fogo", diz, se referindo ao estudo da relação da flora e da fauna com os incêndios.

Na reserva, ela aplica diferentes regimes de fogo a parcelas específicas de vegetação herbácea (capins e ervas). Alguns pontos são queimados todos os anos, outros a cada dois ou três anos e outros não são queimados nunca. A pesquisa ainda não foi concluída, mas Fidelis observa alguns resultados.

"Uma das coisas que a gente vê é em relação à diversidade. As parcelas que não queimam têm uma diversidade menor", conta, ressaltando que está estudando apenas a vegetação mais rasteira, que compõe a maior parte do bioma.

Entre as espécies estudadas, ela destaca a erva Bulbostylis paradoxa, conhecida popularmente como barba-de-bode ou cabelo-de-índio. A planta é comum na América do Sul e, mesmo sendo reduzida a tocos carbonizados pelas chamas, só floresce em escala significativa com o fogo: 24 horas após a queima, surgem pontinhos brancos que vão virar flores em menos de uma semana.

Fidelis destaca, porém, que fogo em excesso também é um problema. "A grande diferença dos incêndios criminosos e as queimas dos povos tradicionais e prescritas é o tamanho [da área] que se queima de uma vez só", afirma. "A proposta do MIF é queimar áreas diferentes em diferentes anos."

Quebra de ciclo

Aliado ao trabalho da pesquisadora, o MIF foi implantado na reserva natural com brigadas treinadas. "Graças a essa abordagem de manejo integrado do fogo nós conseguimos quebrar o ciclo de grandes incêndios que vínhamos tendo na reserva e que ocorriam a cada três anos", conta o biólogo André Zecchin, gerente da reserva.

Em áreas públicas, os órgãos que podem executar esse trabalho são o PrevFogo, ligado ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), que gere unidades de conservação.

Ane Alencar, coordenadora do MapBiomas Fogo e diretora de ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), explica que a frequência das queimadas no cerrado deveria ser determinada por eventos naturais, mas que, hoje, grande parte das fontes de ignição vem de áreas de pasto.

Como muitas vezes essas queimas são feitas sem ações preventivas, como os aceiros (áreas onde é feita a limpeza da vegetação, deixando o solo nu para evitar que o fogo se espalhe), o fogo escapa para outras áreas.

Por outro lado, também é problemático quando proprietários reduzem a ocorrência do fogo a zero. "No momento que o fogo ocorre nessas áreas, ele acaba virando um incêndio mais catastrófico", reforça Alencar.

Está em tramitação no Congresso um projeto de lei que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que disciplina o uso do fogo no meio rural e cria instâncias intergovernamentais para gerenciar respostas a incêndios. A ideia é que a legislação possibilite que a técnica seja adotada de forma mais uniforme em diferentes estados.

O fogo em 2023

Neste ano, após uma estação chuvosa mais longa do que o esperado, as queimadas chegaram um pouco mais tarde ao cerrado. A temporada do fogo, que normalmente vai de junho a outubro, começou a ganhar força só em agosto, o que pode indicar que terminará mais tarde.

De janeiro a agosto de 2023, foram registrados 23.631 focos de incêndio no bioma, queda de 16% em relação a 2022, segundo dados do Inpe (Instituto Brasileiro de Pesquisas Espaciais). Mas esse número deve aumentar nas próximas semanas —principalmente considerando que este é um ano de El Niño, fenômeno que traz mais calor e tende a produzir mais incêndios florestais em algumas regiões.

As mudanças climáticas também influenciam nesta dinâmica. Estudos recentes mostraram que o aquecimento do planeta causado pelas atividades humanas já aumentou em 25%, em média, a frequência dos incêndios florestais extremos e que a área florestal anual perdida para o fogo duplicou nos últimos 20 anos.

A repórter viajou a convite da Fundação Grupo Boticário.

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