'A economia é baseada no mundo natural, e não sobrevive sem ele', diz ambientalista indiano

Para pacifista Satish Kumar, humanidade hoje vive uma fantasiosa separação entre ser humano e natureza

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São Paulo

"A economia é baseada no mundo natural e, portanto, se não houver água, solo, madeira, animais, de onde virá a economia?", questiona o ambientalista e pacifista indiano Satish Kumar, 87, fundador do Schumacher College, uma renomada faculdade de sustentabilidade com sede no Reino Unido.

"A economia é um meio para um fim, e o fim é o bem-estar humano e o bem-estar planetário. Mas não temos isso", diz o educador, para quem a economia praticada no mundo atual se distanciou tanto de seu sentido original (eco, do grego "oikos", é lar ou local de morada, e "oikonomia" é sua administração) que deveria se chamar "dinheironomia".

Crítico dos meios de produção em massa, Satish nomeou sua escola em homenagem ao amigo e economista britânico, nascido na Alemanha, E.F. Schumacher (1911-1977), autor do livro "Small is Beautiful" e para quem a economia é uma subárea da ecologia. As ideias de Schumacher inspiraram movimentos como o "fair trade" (compra justa, em inglês) e "buy local", de incentivo à compra de produtos locais.

Depois de receber mais de 500 brasileiros no campus do sudoeste da Inglaterra, em 2014 uma unidade da Schumacher College foi aberta no Brasil.

Satish diz que a humanidade hoje vive uma fantasiosa separação entre ser humano e natureza. Para ele, a incompreensão dessa interdependência está na raiz da atual crise climática.

Homem indicano de pele acobreada, calvo e com cabelos brancos, veste blusa amarela clara e colete azul claro com botões, sorri sentado a uma mesa no jardim de uma construção de pedra, que se vê ao fundo
O ambientalista e pacifista indiano Satish Kumar no campus da Schumacher College, centro de estudos de sustentabilidade que fundou no sudoeste da Inglaterra em 1991, em cena do documentário 'Teaching Nature' - Divulgação

"O homem escravizou a natureza, como se ela não tivesse vida e pudesse ser explorada infinitamente", diz. "Enxergamos a natureza como algo separado de nós, algo inferior. Só que nós também somos natureza."

O ambientalista, que se tornou monge jainista aos nove anos, defende a redução do crescimento econômico, da produção e do consumo excessivos. Propõe o que chama de "simplicidade elegante", um modo de vida de baixo impacto, com foco no "ser" e não no "ter", que dá título a um de seus poucos livros lançados no Brasil pela editora Palas Athena.

No auge da Guerra Fria, Satish iniciou uma marcha pela paz, inspirada nas ideias de Mahatma Gandhi. Partiu da Índia, sem dinheiro, e atravessou 13 mil quilômetros e três continentes a pé e de barco ao longo de dois anos e meio para encontrar líderes das potências nucleares da época em Moscou, Paris, Londres e Washington.

Sua filosofia é objeto do documentário "Teaching Nature", de Lucas Barragan, que estreia agora no Brasil na plataforma Aquarius, a mesma que lançará em abril o filme "Amor Radical", do brasileiro Julio Hey, sobre a jornada de vida do ativista indiano. Satish vem em 2024 ao Brasil para o lançamento e uma série de conferências e encontros.

Satish avalia que o Brasil deve priorizar o combate à fome e a proteção de seus biomas e povos indígenas. "O Brasil não deve destruir suas florestas para exportar alimentos para a China."

Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida à Folha.

Sua escola homenageia um economista que considerava a economia como subárea da ecologia. Por quê?
Porque a economia, sem a natureza, não é economia, e não pode sobreviver. Schumacher disse que a economia é um meio para um fim, e o fim é o bem-estar humano e o bem-estar planetário, mantendo a natureza íntegra, sem poluição, sem desperdício, sem emissões excessivas de carbono. Schumacher disse que a economia está a serviço das pessoas e do planeta, não as pessoas e o planeta a serviço da economia.

O sr. defende uma educação integral e prática. Como esse modelo serve aos desafios do mundo contemporâneo?
Nossa educação convencional, criada durante a Revolução Industrial, está obsoleta. Ela pensa que os jovens não têm corpo nem coração nem mãos nem pernas, e só ensina a cabeça, e apenas metade dela. Todos temos dois hemisférios do cérebro. O esquerdo é o hemisfério racional. O direito é o hemisfério da imaginação, da arte, do relacionamento, da compaixão. Nossa educação tem gastado bilhões apenas educando a metade esquerda do cérebro. Isso é trágico.

A educação não deve ser apenas para empregos, deve ser para a vida. A maioria dos empregos é muito destrutiva. Eles poluem, desperdiçam e só enxergam a natureza como recurso para a economia. Então, precisamos de uma revolução na educação para torná-la centrada na natureza, na vida e na Terra. O livro da natureza é o maior livro que temos, e as crianças têm que experimentar isso: não pode vir dos livros nem da internet, mas da experiência.

Emergências climáticas têm se intensificado, graças, segundo o sr., a uma guerra dos humanos contra a natureza. O que é essa guerra?
A guerra com a natureza é tratá-la como se ela não tivesse vida e pudesse ser explorada infinitamente. Escravizamos a natureza, a vemos como algo separado de nós, algo inferior. Só que nós também somos natureza.

Qual é o papel da pandemia de Covid nessa guerra contra a natureza?
Acredito que a razão pela qual tivemos uma pandemia é porque estamos invadindo e destruindo a natureza selvagem. Os animais selvagens e os vírus selvagens entram na cadeia alimentar, e temos a Covid. Que, portanto, foi produzida pelo homem, pela expansão da agricultura e da monocultura. A natureza não gosta de monocultura, ela prefere a biodiversidade.

Para evitar futuras pandemias, precisamos reduzir nosso impacto no meio ambiente e nosso consumo de carne e ter uma agricultura orgânica, mais humana e em menor escala.

Convenções climáticas tentam engajar países na contenção da temperatura mundial ao crescimento de 1,5ºC. Há motivo para otimismo?
É uma coisa boa que a ONU, governos e empresas estejam focando as mudanças climáticas. Mas estão fazendo isso de maneira errada. Em vez de reduzir sua pegada no planeta, querem encontrar soluções tecnológicas. E não se pode resolver o problema com a mesma ideia que causou o problema em primeiro lugar.

Essa ideia de crescimento econômico ilimitado não é possível, mas é o foco de todos os países e empresas. O crescimento se tornou um deus ou uma religião. Não existe crescimento econômico infinito em um planeta finito. Precisamos de crescimento no bem-estar, nas relações humanas, na saúde, na arte. Não temos isso. Temos cada vez mais pessoas doentes, física e mentalmente. Isso não é bem-estar. Nossos oceanos estão cheios de plástico, nossos rios estão cheios de esgoto, nosso solo está cheio de produtos químicos e fertilizantes venenosos.

O sr. prega a simplicidade elegante como parte da solução desse impasse. O que é isso?
Significa que precisamos ter uma vida simples para que os outros possam viver de forma simples. Hoje, uma parte muito rica da sociedade está gastando muito dinheiro em tudo. A sociedade de consumo é o motor do crescimento econômico e, portanto, promove o consumismo.

A indústria publicitária cria desejos por coisas que você nunca soube que precisava comprar e está semeando fome e inadequação, medo e complexo de inferioridade, falta de confiança em si mesmo e ganância. Por que ter tanto se só se pode usar um vestido ou um relógio por vez? Temos dinheiro, temos carros, temos casas, mas não temos tempo.

Se você vive de forma simples, consome menos recursos da natureza. Temos que lembrar que menos é mais: ser mais e ter menos. A simplicidade elegante é boa para a natureza, para a sociedade e para você mesma.

O Brasil foi particularmente afetado nos anos de pandemia, tanto do ponto de vista humano quanto ambiental. Depois de ter sido liderança no campo ambiental, qual é o lugar do Brasil hoje neste debate?
No momento, vocês têm um bom presidente e também têm uma ótima ministra do Meio Ambiente, Marina Silva —ela é maravilhosa. O Brasil é um país muito afortunado, pois possui uma grande extensão de terra e menor população em comparação com a Índia e a China. Portanto, pode se dar ao luxo de ter mais florestas e proteger a Amazônia, plantar mais árvores e ter alimentos perenes. Por que o Brasil deveria destruir sua floresta e seu ambiente para produzir alimentos para a China, os Estados Unidos ou outros países? Especialmente enquanto há brasileiros passando fome.

Ninguém deve passar fome. Todas as outras coisas são secundárias. A produção de alimentos de boa qualidade deve ser prioridade. E, para isso, a agricultura deve ser valorizada. No momento, cultivar alimentos é visto como um trabalho árduo de pessoas sem educação, pobres e atrasadas.

O Brasil deveria levar mais pessoas para o campo, onde estarão mais saudáveis, em contato com a natureza. Os agricultores são o futuro do Brasil porque o alimento é fundamental e vem primeiro. Se os agricultores estiverem em baixa, o Brasil estará em baixa. Se os agricultores estiverem em alta, o Brasil estará em alta.

E qual é o lugar da Índia, uma das potências do mundo multipolar, e um dos maiores consumidores de carvão do mundo?
A Índia está copiando o sistema ocidental de produção industrial, consumismo e crescimento econômico e se esqueceu de sua cultura. Embora o novo governo [do nacionalista Narendra Modi] exalte que somos hindus, ele deixou de lado as tradições e os valores hindus. O governo é hindu apenas no nome —adotou um chauvinismo hindu. Os valores hindus são simplicidade, não violência, harmonia com a natureza, igualdade. O país acabou de pousar na Lua enquanto crianças estão com fome nas ruas e pessoas vivem em favelas. Não me orgulho disso.

RAIO-X

Satish Kumar, 87, nasceu no Rajastão, estado da Índia que faz fronteira com o Paquistão. Aos nove anos, tornou-se monge jainista (religião do século 6º a.C.). Aos 18, integrou movimentos pela reforma agrária na Índia, e, em 1962, iniciou uma marcha pela paz que atravessou três continentes em dois anos e meio de caminhada. Mudou-se para o Reino Unido nos anos 1970, onde fundou a revista Ressurgence & Ecological, referência no campo do ambientalismo, da qual hoje é editor emérito. Em 1991, fundou o Schumacher College, centro de estudos de sustentabilidade que se tornou referência global no assunto. Publicou dez livros, dos quais foram lançados no Brasil "Simplicidade Elegante" e "Solo, Alma, Sociedade", ambos pela editora Palas Athena, e "Bússola Espiritual" (ed. Pensamento).

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