Tempestade perfeita favorece uso da energia nuclear, diz agência da ONU à Folha

Cenário de preocupação com corte de emissões e segurança energética cria novo momento para o setor, afirma o diretor-geral da AIEA

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São Paulo

O estabelecimento do senso de emergência climática no planeta e a insegurança energética decorrente da Guerra da Ucrânia criaram um novo momento para o uso da matriz nuclear, que completa 70 anos de operação comercial em junho.

"Na política energética, muitas vezes faz falta que as estrelas se alinhem. No caso da energia nuclear, há uma espécie de tempestade perfeita", afirmou à Folha o diretor-geral da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), Rafael Grossi.

"Por um lado, há o tema da mudança climática, a necessidade de os países responderem às necessidades do Acordo de Paris [para controle de emissões de carbono]. E a isso se somou a guerra, uma preocupação muito forte sobre a segurança energética, principalmente na Europa", disse.

O diretor-geral da AIEA, Rafael Grossi, na sede do órgão de energia atômica da ONU, em Viena
O diretor-geral da AIEA, Rafael Grossi, na sede do órgão de energia atômica da ONU, em Viena - Joe Klamar - 22.nov.2023/AFP

O diplomata argentino, que fará 63 anos no próximo dia 29, está à frente do órgão da ONU (Organização das Nações Unidas) desde 2019 e foi reconduzido ao cargo no ano passado. É considerado o mais ativo dos diretores-gerais dos 67 anos da agência, algo exacerbado pelo dito alinhamento estelar.

Ele organizou, com o governo belga, aquela que será a primeira cúpula de energia nuclear desde que o reator soviético de Obninsk foi ligado à rede elétrica perto de Moscou, em 27 de junho de 1954. "Nunca houve nada parecido", afirmou ele na segunda-feira (15) por Zoom de Viena, sede da AIEA. A expectativa é de que cerca de 30 países participem do evento, que acontece em março.

"O Brasil é essencial para o debate, acredito que estará conosco", disse. Para o argentino, o país tem um ativo único, que é um programa nuclear sofisticado, com duas usinas ativas e uma em construção, atividade militares e médicas, e seus 62% de eletricidade oriundos da atriz hídrica. "Não se trata de ou nuclear ou renovável, e sim de usar os dois", diz.

Pelo fato de o encontro ser em Bruxelas, sede da Otan (aliança militar do Ocidente) e da União Europeia, a Rússia, que domina o mercado de combustível para usinas nucleares, não estará à mesa. "São circunstâncias políticas", ponderou Grossi, que procurou "uma audiência o mais global possível, não um evento europeu".

Ele cita os desenvolvimentos recentes da indústria, com a construção de reatores em países como Egito e África do Sul. Um quarto da eletricidade produzida nos Emirados Árabes Unidos deverá vir de quatro reatores nucleares. "Eles e a Arábia Saudita estão investindo no nuclear. Quem diria isso de países que nadam em petróleo?", afirmou.

Combustíveis fósseis dominam o mercado de energia e são a principal fonte de emissões de gases de efeito estufa, motores de mudanças climáticas associadas ao aquecimento global. Em 2022, 35,2% da produção de eletricidade vinha de termelétricas a carvão. Usinas nucleares compunham 10% do mix. No cômputo da energia dita limpa, o átomo representa 25% da geração mundial.

Quando é analisada a matriz como um todo, o petróleo lidera. Com o noticiário coalhado de tragédias ambientais, países começaram a se mexer para tentar fazer valer a meta da ONU de chegar a emissões líquidas de carbono zeradas em 2050.

A energia nuclear, que viu um gigantesco revés após o acidente decorrente do tsunami que atingiu a usina de Fukushima (Japão) em 2011, voltou aos poucos ao centro das discussões. A guerra e a necessidade de países sem recursos renováveis abundantes, como os do Leste Europeu, de assegurarem o aquecimento no inverno consolidaram o debate.

Em 2022, um passo foi dado quando a União Europeia qualificou a energia nuclear como verde, dado suas emissões praticamente nulas na geração —as mortes associada a seu ciclo todo, numa conta da Agência Internacional de Energia, só não são menores do que as da matriz solar.

Há, claro, carbono emitido durante o processo de mineração do urânio que alimenta seus reatores e outras partes do processo. Além disso, segue a preocupação com segurança, como o recente terremoto no Japão e os combates em torno da usina de Zaporíjia, ocupada pelos russos no sul ucraniano, lembram.

Além das dificuldades para lidar com a radioatividade no caso de uma acidente, há a questão do processamento dos rejeitos de reatores, o chamado lixo atômico. E outros temores, como recentemente sobre o descarte de água de Fukushima no mar, que a AIEA diz acompanhar de perto.

Hoje, a previsão de aumento na produção desta energia segundo a AIEA subiu 25% ante 2020, quando se moveu positivamente pela primeira vez desde Fukushima.

"Ao longo da história, houve uma demonização da energia nuclear. Só houve dois acidentes muito sérios até aqui [Fukushima e Tchernóbil, na Ucrânia soviética em 1986]. Muitas pessoas a confundem com armas nucleares. E há o fato de que a opacidade da indústria colaborou para essa narrativa", afirmou.

O debate pega fogo na Europa, onde a França nunca abandonou seu protagonismo, com 70% da eletricidade vindo de seus 56 reatores, a segunda maior quantidade do mundo (EUA têm 92). Lá, o presidente Emmanuel Macron apresentou na semana passada planos para acelerar a construção de 14 novas usinas.

A posição de Paris é antagonizada por Berlim, que desativou seu parque nuclear após Fukushima e a pressão do influente Partido Verde. "Pesquisas já mostram que a população alemã apoia a energia atômica, mas o governo não mudou de posição", diz Grossi.

Ele aponta para o dinheiro como um dos maiores problemas para os entusiastas do nuclear. "Hoje, é preciso o Estado. Não é qualquer um que pode fazer investir R$ 20 bilhões", disse. Pequim, por exemplo, opera 55 reatores e planeja construir mais 41. "É preciso crédito. Muita gente proibia o financiamento de energia nuclear. Isso precisa mudar", afirmou.

Ele aplaudiu a decisão da conferência climática COP28 de colocar a energia nuclear como uma matriz central para a neutralidade em carbono, mas diz ser otimista a meta estabelecida por 20 países presentes ao encontro para triplicar a geração até 2050.

Isso implicaria adicionar cerca de 270 reatores aos 412 em operação no mundo —há 59 em construção, o que dá a medida do desafio. A AIEA trabalha com um cenário em que os atuais 386 megawatts de capacidade instalada de produção hoje possam subir para até 890 megawatts, na visão mais rósea, em 2050.

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