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Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Ante a quebra dos votos matrimoniais de Bolsonaro com a nação, o Parlamento podia aprovar o divórcio

A gestão da pandemia mostra que o presidente não preside

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O “na saúde e na doença” do rito católico não rege o casamento entre o presidente e a nação. Bolsonaro, que se casou várias vezes, não é dado a fidelidades eternas. E, embora esperneie por igreja aberta e tenha lotado seu governo de cristãos, tampouco se sabe a qual deus reza. Certo é que esqueceu o juramento sobre o livro sagrado da nação —não custa lembrar, a Constituição, não a Bíblia. Prometeu mundos e fundos aos mesmos que abandona ao vírus.

A quebra das juras é só parcial, pois, desde o anel de noivado, o presidente sempre deixou claríssimas suas intenções e prioridades. O bem-estar dos cidadãos jamais esteve entre elas. Quem aceitou a aliança sabia quem esposava.

Seu desinteresse e sua incapacidade para a administração vieram a calhar para quem acha que o melhor para o país é tirar o Estado da frente. A gestão da pandemia mostra que o presidente não preside.

Terceirizou a saúde. De um lado, delegou-a aos governadores. Eles que vacinem por própria conta, risco e orçamento, desviando das cascas de banana presidenciais. De outro lado, privatizou o problema, cada um que cuide de si.

Nisso, justiça seja feita, não está sozinho. Câmara e Senado tomaram a mesma barca privatizadora da vacina. Nem na pátria do liberalismo nos tempos trumpistas, o Estado abdicou da prerrogativa neste campo —sem contar a disponibilidade incerta de farmacêuticas venderem a particulares.

Aqui, no espírito liberal, espera-se que o mercado socorra onde o governo soçobra. Encarnando a Poliana, o presidente da Câmara enalteceu o benefício da privatização: a aceleração da cobertura vacinal. Como todo polianismo, o seu é cego para prejuízos. Vai se inocular quem tiver bala na agulha. E quem não tem?

A desigualdade é sempre lembrada em sua forma mais exuberante, a de propriedade, isto é, a apropriação desigual de bens econômicos por partes da sociedade. É o que arma a pirâmide social visível, de mansões e barracos, Ferraris e carretos.

Mas há outro mecanismo, como ensina Charles Tilly (“Durable Inequalities”), menos transparente a organizar a estratificação social. Trata-se da apropriação particular das oportunidades coletivas. Consiste em converter conhecimentos, habilidades, benefícios e prerrogativas em exclusividade de um ou poucos grupos, impedindo sua distribuição equânime na sociedade.

A monopolização, uma vez estabelecida, tende a durar. Passa de uma geração a outra, restringindo as boas possibilidades a pequeno número de famílias e grupos. Nasce-se nesta teia de relações privilegiada ou nela se penetra por longo convívio intraelite, do parquinho aos MBAs. Estas redes abrem as portas para todo o resto. E as trancam para os de fora, a quem chegam apenas sobras e migalhas.

É um mecanismo sutil de manutenção da desigualdade. Muitos o reproduzem sem se dar conta, daí sua enorme efetividade. Mas a pandemia quebrou a invisibilidade, escancarando sua aplicação crua no acesso desigual a oxigênio, leitos, UTIs, vacina. A gente de bem passou a pedir para cortar a fila, caso de membros do Ministério Público, ou pular sem pedir, como os inoculados —sabe-se lá com que— num estacionamento mineiro.

​Ante a quebra dos votos matrimoniais do presidente com a nação, o Parlamento podia aprovar o divórcio. Preferiu chancelar a desigualdade de oportunidades de sobrevivência. Quem tem mais, chorará menos mortos. Quem só tem a vida a perder, pagará a conta das núpcias infelizes até que a morte os separe.

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