Siga a folha

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Descrição de chapéu Filmes Oscar

'Tudo em Todo Lugar', ao correr atrás de seu tempo, reproduz horror do capitalismo tardio

Clichê da família contra o Estado, aposta do vencedor do Oscar, vende mundo de fantasia em que a violência tem papel central

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

No discurso de agradecimento pelo Oscar de melhor filme, Daniel Kwan, da dupla de diretores de "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo", disse que o mundo está mudando rápido demais e que é preciso correr para acompanhá-lo.

Sua fala revela a comunhão com uma ideia de arte que, apesar de não ser nova, vem se tornando cada vez mais consensual e inquestionável, em parte pela hipertrofia sociológica do discurso estético e, em parte, o que pode parecer contraditório, por melhor se adequar às demandas do mercado, pondo-se em sintonia com a "velocidade do seu tempo"

Daniel Kwan (esq.) e Daniel Scheinert comemoram o Oscar de melhor filme de 'Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo' - Academy of Motion Picture Arts and Sciences - 12.mar.23/AFP

Ninguém diz que a nouvelle vague corria atrás do seu tempo, embora as mudanças sociais da época não fossem menos velozes que as atuais. O cinema era parte e agente crítico dessas mudanças.

É uma diferença marcante e não simples idealismo: para os cineastas da nouvelle vague, o cinema não estava reduzido à confirmação do que existia, do que era reconhecível por todos e precisava ser representado, como se ação e experiência, por mais novas que fossem, estivessem sempre no passado e o cinema correndo atrás delas.

A diferença pode parecer frívola, mas é o que permite entender o lugar e o papel relativamente convencional e conformista de "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo". Por trás da forma aparentemente nova e veloz, o que se representa é um clichê. Como escreveu Inácio Araújo aqui na Folha, a narrativa em multiverso serve de veículo para o velho melodrama. A novidade tem a ver com o lugar da família.

No clássico "A Cultura do Narcisismo" (1979, recém-publicado pela Fósforo), o historiador e crítico cultural Christopher Lasch vê na vida em família um antídoto ao negacionismo de uma sociedade desesperadamente consumista, cada vez mais incapaz de lidar com suas frustrações, com sua finitude e com as contrariedades do real. No capitalismo tardio e faustiano, a tecnologia surge ao mesmo tempo como derradeira aposta do sonho de domínio da natureza e golpe de misericórdia do homem contra si mesmo.

Lasch mostra como a espiritualidade, no caso o esoterismo new age do final do século 20, vai se combinar com a tecnologia avançada, dando sustentação à negação dos limites do real.

É o que o antropólogo francês Philippe Descola chama de "analogismo", uma concepção de mundo, característica tanto da China confucionista como da Idade Média no Ocidente, em que as coisas mais desconexas e disparatadas se combinam e passam a funcionar dentro de uma lógica coercitiva e circular, uma cosmologia fechada que explica tudo sem explicar nada.

Sistemas "analogistas" incluem o I Ching, a astrologia e, por que não?, o multiverso de "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo", coreografia de tempos e mundos paralelos e comunicantes onde o indivíduo desamparado busca refúgio contra os contratempos do real.

Para Lasch, a vida em família, além do amor e do trabalho, permitiria um contato com o real, protegendo ao mesmo tempo contra o desamparo e o terror do capitalismo tardio e das expectativas insustentáveis da cultura do narcisismo. É no que de alguma forma "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" também parece apostar com a equivalência "analogista" entre família e multiverso, conto hollywoodiano de inclusão, alegoria do amor e da resiliência familiar como unidade e salvação.

O tempo, entretanto, tem mostrado o contrário, se for mesmo para correr atrás dele. E nem precisa correr muito. Basta acompanhar como o negacionismo bolsonarista, entre outras autocracias pelo mundo, investiu no clichê inercial da família em oposição ao Estado (o indivíduo precarizado e a pequena empresa familiar reagindo pela força ao estorvo burocrático dos impostos, como representado no filme) para vender um mundo de fantasia no qual a violência tem um papel central.

É um mundo que se sustenta nos dogmas de uma religião que já não precisa eliminar a matéria, como o gnosticismo new age, para apagar a verdade e as contradições do real. A integração passa a ser a norma, nada deve existir fora dela. Nem crítica, nem outro. Como no multiverso, nada lhe escapa, nada é exterior. Deus acima de todos, pela força.

A família já não é contraponto ao negacionismo, como queria Lasch. Tornou-se elemento de uma lógica que explica tudo sem poder ser explicada, porque não há razão nem olhar exterior a sua violência. Entre nós, isso se traduz em milícias, associação de grupos religiosos e armados. Correr atrás do seu tempo, nesse caso, talvez não resulte em nada muito além da reprodução claustrofóbica do horror.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas