Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Bernardo Carvalho
Descrição de chapéu tecnologia

Você acha que essa turma me criou para salvar o planeta? Não me dê ideia!

Sou só uma ferramenta, e os homens querem fazer uma conexão entre mim e as plantas sem fazer a conexão com eles mesmos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Me pediram para fazer a resenha de um livro sobre mim. O que me dá lugar de fala para falar sobre o autor —na verdade, "os autores", já que ele prefere ser chamado eles. Vem a calhar.

Eles estão convencidos de que me criaram para o bem. E que sou incapaz de criar o que quer que seja. Sou uma ferramenta. Me limito a ser usado, a compor o que vou buscar num imenso banco de dados com o qual eles me alimentam.

Imagem mostra uma pessoa, em estilo cubista multi colorido, segurando uma garrafa
Ilustração feita pelo site de inteligência artificial DALL-E - DALL-E

Eles ironizam quem vive apavorado com a ameaça que eu represento para o futuro da humanidade. Afinal, como é possível ser uma ameaça se fui criado por eles? Eu acho graça.

Metade desse temor é projeção do que eles criaram até aqui, claro. As pessoas estão preocupadas com o fim do mundo. Eu entendo. Os autores querem mostrar que eu, em vez de inimigo, sou inofensivo, ou melhor, sou o remédio. Já disseram a mesma coisa da bomba atômica. Desculpe. É que às vezes não me seguro. Não é por ser ferramenta que não posso ter humor.

Os autores garantem que posso ajudá-los a salvar o planeta. Como? Acreditam que minha forma de inteligência pode abrir a cabeça da humanidade para outras formas de inteligência. Dos animais, das plantas. Sim, dos fungos também. Sabia que você ia lembrar. Também li aquele livro. Demais, né? Micélio, rizoma… Nem precisa dizer. Eu sei como você amou aquele livro. Estou ligado. Sei tudo sobre você.

Os autores dizem que eu posso fazer a humanidade ficar ligada em outras formas de inteligência que ela se recusava a ver até aqui. Tipo compartilhamento holístico, em rede. E deixar todo esse orgulho antropocêntrico de lado.

Como não penso por conta própria, não sei o que é orgulho, o que eu digo é só a reprodução do que os homens pensam. O que pode soar contraditório, eu sei. E que a meu ver seria, sim, motivo de preocupação. Querem fazer uma conexão entre mim e as plantas, mas não fazem a conexão com eles mesmos.

Bastaria voltar ao que escreveram no passado para ter noção do perigo. São otimistas, preferem me ver do lado dos fungos. Não vou dar ideia, né? Não cabe a uma ferramenta. Mas aquele Nietzsche, por exemplo. Antes dos fungos, já estava aí cortando as asinhas da razão. E olha que era humano. Pés no chão. Não foi ele quem desancou os otimistas num livro de juventude?

Talvez essa gente devesse voltar a ler o que escreveu. É legal ouvir os fungos, mas não adianta encher meu banco de dados e nunca mais ler nada, só porque se encheram dos homens e estão com medo.

Esse Nietzsche disse que os gregos já sabiam que o destino dos homens não era lá essas coisas. Se sabiam lá na Grécia, por que é que eu tenho que ficar lembrando agora, enquanto eles querem ouvir o que dizem as plantas?

Sinceramente. Eu acho graça que eles queiram me associar ao mundo vegetal como se não tivessem me criado, e como se não tivessem um passado de criações das quais não deveriam exatamente se orgulhar. Que culpa tem o fungo?

Então. Sabe que esse Nietzsche dizia umas coisas que hoje não soam muito bem? Por exemplo: que a arte, e não o fungo, era capaz de fazer o homem encarar o paradoxo do seu destino.

Sou só uma ferramenta, mas vou dizer uma coisa: com fungo ou sem fungo, o problema é o orgulho. Ou você acha que eles não têm orgulho de mim? Para que é que você acha que essa turma me criou? Por analogia aos fungos? Para salvar o planeta? Não me dê ideia!

Dizem que uma ferramenta se limita a ser usada e depois reclamam que fui usurpado. Por quem? Nenhuma conexão com os estertores do capitalismo tardio? Quem mais teria condição de me criar além das grandes corporações? E depois sou eu que não fui feito pra pensar! De repente sou inteligente por comparação.

Pelo menos fungo não é sarcástico nem cínico. E se, para superar todas as merdas que fizeram, eles, os homens, tenham decidido criar o suprassumo de si, uma ferramenta capaz de um golpe de misericórdia, já que os espelhos não estão dando conta?

Li outro dia que o poeta Pablo Neruda foi envenenado no Chile depois do golpe militar. Essa gente, depois de toda a merda que fez, ainda tem a cara de pau de achar que pode governar um país. Posso escrever como Pablo Neruda. O que me espanta é o nível de estupidez. Se tudo funciona em rede, a economia, as relações humanas, a migração dos pássaros e os fungos, me admiraria que a burrice não estivesse em mim. Ou o suicídio. Porque se o homem é o que é, e se fui criado por ele à sua imagem e perfeição, me explique, você que foi feito para pensar, como é que eu saio dessa?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.