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Inácio Araujo

Livro de Godard compõe panorama do cinema tão instigante quanto seus filmes

Para autor, cinema nasceu para pensar, mas acabou na indústria das máscaras, sucursal da indústria das mentiras

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Inácio Araujo

Crítico de cinema da Folha

[RESUMO] O cineasta Jean-Luc Godard, morto na terça-feira (13) aos 91, elaborou uma profunda reflexão sobre seu meio de expressão e sua própria trajetória no livro "História(s) do Cinema", poema-ensaio que, como seus filmes iconoclastas, busca disseminar sentidos e olhares, sem se prender a significados que acabam por enclausurar imagens e palavras.

"não vá mostrar
todos os lados das coisas
preserve, você,
uma margem
de indefinição"

Esses versos (?) abrem o capítulo um do livro "História(s) do Cinema" e indicam aquilo que os filmes e artigos de Jean-Luc Godard sempre mostraram: nunca deixar que o sentido se fixe, que domine e enclausure suas imagens e/ou palavras. Pois, como disse Antonin Artaud, sentido dado é sentido morto. Godard falará na "guilhotina do sentido".

Jean-Luc Godard em imagem do livro 'História(s) do Cinema' - Reprodução

Um dos principais nomes da arte contemporânea, Godard morreu na última terça-feira (13) aos 91 anos. Segunda a imprensa francesa, o cineasta teria recorrido à morte assistida, prática permitida na Suíça, país em que vivia. Parentes afirmaram que o artista franco-suíço não estava doente, mas muito exausto. Godard foi um inconformista até o fim.

Em maio deste ano, saiu no Brasil o poema-ensaio "História(s) do Cinema" (Fósforo/Luna Parque), parte de um trabalho monumental a que Godard se dedicou durante uma década, de 1988 a 1998, que resultou também em um filme de oito episódios. Partindo de um grande arquivo de livros, filmes e pinturas, Godard refletiu sobre o cinema, sobre sua formação pessoal e, de forma mais geral, sobre o século 20, compondo um panorama tão instigante e iconoclasta quanto seus próprios filmes.

Godard apreciava as coisas vivas e em movimento. Inclusive, ou sobretudo, a história.

"história do cinema
atualidade da história
história das atualidades e dos noticiários
histórias do cinema
com alguns s
e alguns SS"

Uma história (ou várias) que remonta à Segunda Guerra. História sofrida especialmente pela geração da nouvelle vague francesa. Mas:

"ainda que fatalmente arranhado
um simples retângulo
de trinta e cinco
milímetros
salva a honra
de todo o real"

Porque existiram "M, o Vampiro de Dusseldorf" (1931), de Fritz Lang, Charles Chaplin e seu "O Grande Ditador" (1940), Ernst Lubitsch e seu "Ser ou Não Ser" (1942).

Godard não mencionou "O Testamento do Dr. Mabuse" (1933), que, no entanto, consta dos filmes referidos no capítulo um do livro: é o filme em que Lang mostra como se fabrica um tirano —e como eliminá-lo.

Nada mudará ao longo dos capítulos desse livro publicado originalmente em 1998. Trata-se de navegar. A precisão é própria do navegar, não do viver, segundo Fernando Pessoa. Nas histórias de Godard, vida e navegação formam uma só coisa: imprecisa.

"trinta e nove
quarenta e quatro
martírio e ressurreição
do documentário
ah que maravilhoso
poder ver
o que não se enxerga
ah doce milagre
aos nossos olhos cegos"

O cineasta refere-se à ocupação da França pela Alemanha. O que não se enxergou ali que os documentários revelaram? Estranho: Godard cita entre os autores desse capítulo Max Ophüls, mas não seu filho, Marcel, que fez em 1969 "A Dor e a Piedade", talvez a mais dilacerante revelação do que foi a França, ou a maior parte dela, naqueles anos de ocupação.

Aqueles anos, completa Godard, serviram para Hollywood, com a televisão, "arruinar todos os cinemas da Europa". E serviram para Henri Langlois, o fundador da Cinemateca Francesa, esconder os filmes que os nazistas queriam destruir, assim como, após a guerra, esconderia os filmes alemães que o revanchismo queria liquidar.

A história do cinema, para Godard, passa por Langlois, é claro, e começa por ser "a minha história e o que é que eu tenho a ver com tudo isso". A história que mais importa, pois a que se projeta, com a claridade e a obscuridade.

"mas é pelas costas
que a luz
irá golpear a escuridão"

Da Segunda Guerra sairá a cinefilia, a Cinemateca, a preservação, os Cahiers du Cinéma e, por fim, a nouvelle vague. Godard situa sua geração como aquela da metade do século 20. Mas também a que irrompe quando o cinema está chegando aos 50 anos. E talvez seja a metade da existência dessa arte, supõe.

"talvez a única geração
que se encontra
no meio tanto do século
como do cinema"

A geração que enxergou o que já veio e o que ainda viria. Claro, há uma sombra de nostalgia em tudo isso. Como se uma magia secreta se houvesse perdido para sempre, assim como a amizade Truffaut/Godard. O tempo não volta atrás.

"e o cinema é só uma indústria
da evasão
porque é antes de mais nada
o único lugar
em que a memória é escrava"

Ou ainda, retomando a célebre formulação dos irmãos Lumière, para quem o cinema seria uma invenção sem futuro.

"só que depois
os dois irmãos
não foram bem
[compreendidos
eles falaram sem futuro
querendo dizer
uma arte do presente
uma arte que dá
mas que recebe antes de dar"

Está desfeito, assim, o mal-entendido? Ou, talvez, todo entendimento seja um mal-entendido. Ou, ainda, ao contrário, trata-se de perguntar, sempre, a cada filme, a cada texto, o que, afinal, é o cinema, sem esperança de ter uma resposta final.

Exemplos:

"o cinema
herdeiro da fotografia
sempre quis
ser mais verdadeiro que a vida
como eu ia dizendo
nem uma arte, nem uma
[técnica
um mistério"

Ou:

"o cinema
como o cristianismo
não se fundamenta
em uma verdade histórica
ele oferece uma narrativa
uma estória
e fala para nós
agora: acredite"

Isso está em qualquer "Paixão de Cristo", em "Ben-Hur" (1959), em "Os Dez Mandamentos" (1956) e até nos filmes de herói da Marvel: trata-se de ver para crer.

Ou mesmo:

"uma imagem
não é forte
quando é brutal
ou extravagante
mas quando
a associação entre as ideias
é longínqua
longínqua
e justa"

Isso é Eisenstein, Hitchcock, Glauber Rocha...?

Ou:

"o cinematógrafo
ou seja
formas que caminham
na direção da palavra
mais precisamente
uma forma que pensa
que o cinema a princípio
[foi feito
para pensar"

No pequeno espaço que separa uma linha da outra, o poema godardiano respira e se enche de significados que nos levam a várias partes.

Em frente:

"Se uma imagem
Olhada à parte
Expressar claramente
Se trouxer em si
uma interpretação
Ela não vai se transformar
Em contato com outras
[imagens
As outras imagens não vão ter
Poder algum sobre ela
E ela não vai ter poder algum
Sobre as outras imagens
Nem ação
Nem reação
Ela é definitiva e inutilizável
Dentro do sistema
Do cinematógrafo"

A formulação acima faz quase obrigatoriamente pensar em Robert Bresson, que tanto defendeu a ideia de cinematógrafo como algo diferente do cinema. Foi durante uma filmagem de Bresson, aliás, que Godard encontrou sua segunda esposa, Anne Wiazemsky, neta de François Mauriac, um prêmio Nobel de Literatura, afinal de contas. Ela contará sua história com Godard e como ele precisou vencer a resistência do avô para chegar ao casamento no livro "Um Ano Depois" (Todavia).

Isso foi só uma pausa para descanso, porque parece que estou aqui matando tempo, juntando belas frases meio ao acaso. Nada disso. É terrível selecionar essas frases porque cada escolha implica sacrificar outras tantas.

E o cinema nasceu para pensar, mas acabou não na indústria das comunicações, mas na da cosmética, segundo Godard. A indústria das máscaras, sucursal da indústria das mentiras.

Arte, comunicação, mentira: Godard deixa claro, todo o tempo, que a história para ele já começa no plural. Trata-se de disseminar sentidos, como fez em seus filmes desde sempre, sem nunca prender-se a eles.

Como não fruir a história do multimilionário Howard Hughes, ex-patrão da RKO, que obrigava suas estrelas, uma de cada vez, a passearem de limusine por Hollywood, a 5 km por hora, porque assim os seios não balançavam e não corriam o risco de cair. Hughes, que desenhava sutiãs para Jane Russell... Com efeito, é preciso concordar que todo poder termina em espetáculo. Mas se fosse hoje, Hughes estaria perdido, poderoso ou não, bilionário ou não.

Nem só de calhordices vivem as histórias do cinema. Por exemplo, Marcel Pagnol, o cineasta e dramaturgo francês, descobriu, diz Godard, a origem do close: as moedas com o rosto do imperador.

E Godard nunca nos permite esquecer a angústia de todos os cineastas do mundo.

"por acaso ou não
o único
grande problema
do cinema
parece ser para mim
onde e por que
começar um plano
e onde e por que
terminá-lo"

Na verdade, não é o único, porque o filme é entidade híbrida, ao mesmo tempo arte e mercadoria.

"os filmes são
mercadorias
e é preciso queimar os filmes
falei isso para Langlois
mas veja bem
queimar com o fogo interior
matéria e memória
a arte é como um incêndio
nasce daquilo que queima"

"História(s) do Cinema" é todo escrito assim, em versos, porque é mesmo obra de poesia. A cada pausa ou respiração, sempre que pulamos de uma linha a outra, uma imagem se desdobra em palavra ou vice-versa:

"é disso aliás
que gosto
em geral
no cinema
uma saturação
de signos mágicos
que se banham
na luz
da sua ausência
de explicação"

Isto é: nem uma técnica nem uma arte. Um mistério.

Um último adendo: o heroico tradutor das "História(s)" chama-se Zéfere, que para explicar o difícil desafio que enfrentou recorre a Octavio Paz, para quem o objetivo do tradutor é chegar a um poema análogo, embora não idêntico ao original. Na falta de desejável, porém impossível, edição bilíngue, Zéfere dará alguns exemplos do que Haroldo e Augusto de Campos chamariam, talvez, de transcriação. Seja como for, impossível não mencionar o fôlego de seu trabalho.

História(s) do Cinema

  • Preço R$ 79,90 (192 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autor Jean-Luc Godard
  • Editora Fósforo/Luna Parque
  • Tradutor Zéfere
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