Mesmo sem projeto, Lula terá sucesso se frear extrema direita, diz Paulo Arantes

Para filósofo, governo tem poucas alternativas e preservação da Amazônia o ajuda a comprar tempo; leia transcrição

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Eduardo Sombini
Eduardo Sombini

Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

Paulo Arantes, professor sênior do Departamento de Filosofia da USP, se notabilizou por suas análises críticas das contradições do capitalismo brasileiro e da arquitetura política concebida pelo lulismo.

Agora, no terceiro mês do terceiro mandato de Lula, ele diz que nunca foi tão a favor de um governo. Em sua avaliação, o presidente tem pouca margem para fazer algo diferente das políticas dos governos anteriores do PT, sintetizadas por ele na ideia de redução de danos: o esfriamento dos conflitos sociais latentes em um país tão desigual por meio do Bolsa Família e de outros programa sociais, por exemplo.

Qual é o projeto lulista? Eles continuam sem nenhum projeto, como não tinham em 2003. Em 2003, era um discurso progressista, desenvolvimentista, redistributivista. Vai continuar sempre assim: tudo pelo social, tudo pelo emprego, não tem nada de novo. A novidade, de fato, é o que o lulismo fez e nós não prestamos atenção e não soubemos valorizar, só valorizamos quando veio o bolsonarismo: essa redução de danos. Isto é, o lulismo foi um anteparo para essa destruição inerente ao capitalismo nessa sua fase atual, em que ele destrói o seu próprio fundamento, que é a fonte do valor, o trabalho vivo

Paulo Arantes

professor sênior do Departamento de Filosofia da USP

Neste episódio, ele diz não ter certeza que Lula vai conseguir chegar ao fim do ano no Planalto ou cumprir todo o mandato e que seu governo já terá tido sucesso se for capaz de adiar um eventual retorno da extrema direita ao poder.

Lula vai fazer a mesma coisa [que nos mandatos anteriores]. Qual é a possibilidade de o lulismo, entre aspas, dar certo? Adiar cada vez mais a volta da extrema direita, que fez um ensaio geral. Pela primeira vez, um governo com uma semana teve uma tentativa de golpe de Estado

Paulo Arantes

professor sênior do Departamento de Filosofia da USP

Transformar a preservação da Amazônia em um negócio rentável, diz o autor, pode ser o melhor instrumento para Lula comprar tempo em um cenário de desaceleração econômica e pressão política, à semelhança do que o ciclo de valorização das commodities nos mercados internacionais nos anos 2000 proporcionou aos dois primeiros mandatos do petista.

Em fevereiro, Arantes lançou em livro um ensaio publicado no início dos anos 2000, "A Fratura Brasileira do Mundo" (editora 34), que trata do debate sobre a brasilianização dos países desenvolvidos. Na conversa, o autor falou sobre a evolução dessa ideia, que expressa a piora das condições econômicas e sociais do capitalismo central, que se tornaria mais parecido com o Brasil.

Arantes também discutiu a interpretação de pesquisadores como Gabriel Feltran, Miguel Lago e Rodrigo Nunes, que analisam o bolsonarismo como um universo de empreendedores fortemente ligados a uma economia de pilhagem e a ilegalismos de todo tipo.

Paulo Arantes durante palestra na livraria Martins Fontes, em São Paulo - Regis Filho - 9.mai.14/Valor/Globo

Leia a transcrição da entrevista abaixo.

Esse ensaio, que está sendo reeditado agora em livro, foi escrito no começo dos anos 2000. Nele, você se debruça sobre o debate da época sobre a brasilianização do mundo. Você começa o texto indicando uma grande ironia na temporalidade daquela discussão: "Na hora histórica em que o país do futuro parece não ter mais futuro algum, somos apontados, para mal ou para bem, como o futuro do mundo". Queria te pedir para fazer um balanço dessa noção de brasilianização. Por que o Brasil —não a África do Sul, a Índia ou o México— como síntese desse processo de aumento da desigualdade nos países do capitalismo central e de rebaixamento das condições de vida dos mais pobres? Como o Brasil aparece como uma expressão disso que estava acontecendo no centro do sistema capitalista? A primeira observação que eu preciso fazer é a seguinte: o ensaio foi escrito metade em 2000, metade em 2001 e publicado, acho que em livro, em uma coletânea carioca, depois no meu livro em 2004 e agora, reeditado. De modo que ele tem exatamente 22 anos de idade e é um dado importante: praticamente é uma era geológica.

Imagina que, quando eu escrevi, não existia o grande terrorismo sistêmico do 11 de Setembro, não existia, inclusive, a grande maré da extrema direita mundial que começou pelo menos a brotar a partir da crise de 2008. Não existia ainda a possibilidade, não se cogitava um colapso financeiro como de 2008, e eu escrevi em plena era FHC. Já estava no seu término e, portanto, em um certo sentido, o ensaio era uma espécie, como se dizia no meu tempo, de creolina no chantilly alheio, porque a era FHC já estava nos seus estertores, tinha mais dois anos pela frente, já era o apagão, que estava afundando o regime, a usura natural do regime, e havia grande expectativa quanto uma possível vitória, uma coisa historicamente inédita, do Lula, do lulismo, do PT à frente.

Entrar com aquele assunto —o país do futuro não tem mais futuro, e isso é uma comprovação mundial— era totalmente contraintuitivo. Essa é a primeira coisa que eu devia esclarecer a respeito da data. A segunda, que é mais importante, a [palavra] brasilianização não é minha. É, como nós dizemos, dos gringos, sobretudo dos americanos e depois de um alemão.

O americano é um sociólogo, Michael Lind, e o alemão é o Ulrich Beck, que se notabilizou por um ensaio, aliás, muito importante, um livro muito bom, chamado "Sociedade de Risco". Também usou pela primeira vez, no início dos anos 1990, a palavra brasilianização, mais ou menos na mesma época em que o Lind estava usando. Eu já explico a circunstância.

Só que um usou em um sentido negativo, a brasilianização da sociedade americana significa que nós estamos indo para uma direção horrível, cada vez pior, a nação americana está se degradando socialmente. O Ulrich Beck apontava a brasilianização do mundo como uma espécie de apoteose global. Ou seja, o mundo está cada vez mais parecido com o Brasil, por que nós estamos adentrando alguma coisa que ele chama o admirável mundo novo do trabalho, que é o trabalho precário ou o trabalho flexível, como nós fizemos, e para esse paraíso do trabalho precário e flexível, esse alemão, Ulrich Beck, escolheu o Brasil. Poderia ter escolhido a Índia, a África do Sul, qualquer outro país, mas escolheu o Brasil, e o Michael Lind também escolheu o Brasil para dizer o contrário.

Eu falei: bom, então eu vou explorar isso. Para o alemão, para o Ulrich Beck, que não é um idiota, pelo contrário, é grande sociólogo, mas cometeu esse, digamos, deslize apologético, nós confirmávamos a nossa vocação de país do futuro. Se vocês quiserem conviver bem de uma maneira feliz, não ressentida, não desconfortável com esse novo mundo do trabalho desintegrado, precarizado, flexibilizado, sem direitos, olhem para o Brasil, como eles são felizes, lá tem samba, tem Carnaval, tem sociedade simpática e todo o mundo se vira em uma boa. Não sei, acho que o sociólogo teve um surto, viu um filme colorido com Doris Day no Brasil e "olha, o Brasil do futuro se completou, está lá e é o futuro da humanidade que se espelha no Brasil, que é essa nova sociedade do trabalho em reformulação".

O americano dizia: "Uma sociedade do trabalho em desintegração, veja o estado lamentável da desindustrialização americana, a degradação do centro da cidade, mire-se no exemplo", e ele escolheu o Brasil, poderia ter escolhido outro, poderia ter escolhido a Índia, a Indonésia, a África do Sul, isto é, qualquer país de renda média que nós chamaríamos de semiperiferia, que é onde nós estamos. Nós não somos periferia extrema nem núcleo orgânico do sistema. Nós somos uma espécie de classe média mundial. Não sei por que ele escolheu o Brasil, porque o futuro dos Estados Unidos é como o Brasil: é uma sociedade de castas, em que há uma espécie de guerra de todos contra todos, mas lá embaixo, esquecendo o topo da pirâmide, se pode viver tranquilamente.

Era esse, digamos, o ponto de partida do ensaio. A partir daí, o que pensar dessa visão que o núcleo orgânico ou, como se dizia antigamente, o Primeiro Mundo, nos viu a favor, outro contra? Como é que nesse disparate, de um lado e de outro, nós poderíamos nos reconhecer ou não ou nos autoanalisarmos? É claro que o meu ensaio vai nessa direção. O país do futuro, o futuro chegou, só que esse futuro é sombrio, mas não é nem o que é descrito pelo Michael Lind nem muito menos o descrito pelo Ulrich Beck.

Você mencionou agora que esses dois autores olharam para o Brasil por ser um país de renda média, e não deixa de ser uma espécie de paradoxo olhar para um país de renda média no momento que essas sociedades passavam por um achatamento desse grupo de renda média. Esse era um dos pontos importantes do debate que você apresenta, a classe média que é comprimida, os super-ricos que se tornam mais ricos e os trabalhadores que se tornam mais precários. Como enxerga isso? Olha, é difícil entender o que se passava na cabeça deles naquele momento. Por exemplo, o Ulrich Beck, quando diz isso, diz o seguinte: um terço, digamos, da classe trabalhadora alemã será rifado.

Era o que o Fernando Henrique estava dizendo, a famosa entrevista depois de um ano de governo, é o seguinte: "Sinto muito, rapaziada, mas uma boa porção da classe trabalhadora brasileira, os inimpregáveis, serão inimpregáveis para sempre. Isso é uma mudança estrutural irreversível do capitalismo global. Eu não posso fazer nada e, portanto, virem-se como puderem". Ele não diz isso, mas está subentendido e ganhou grande prestígio entre os meios intelectuais brasileiros progressistas porque não era demagogo, não era populista, estava dizendo a verdade para o povo. Ora, um terço da sociedade brasileira vai sobrar, se não um pouco mais.

Ocorre que a esquerda alemã, se ouvisse isso —e foi um alemão que me disse isso, o Robert Kurz, que eu cito muito—, se um dirigente alemão (prefeito, senador, governador de província, estado federal ou o primeiro-ministro) dissesse isso, ele estaria em 48 horas na rua, demitido pelo Congresso. Embora isso fosse acontecer, ele não poderia jamais dizer e enaltecer, como o Ulrich Beck estava dizendo. "Olha, veja só, não é o fim do mundo, dá para se virar muito bem, eu posso perfeitamente jogar no mar um terço da classe trabalhadora ou dos assalariados alemães e não vai acontecer nada. O que sobrar, vocês vão ser muito felizes na vida, é só imitarem o Brasil, terem o jogo de cintura do Brasil, a flexibilidade, ser uma sociedade mais relacional, não mais hierárquica, estrita, puritana". Era isso que eles estavam dizendo, e eu peguei o caminho do meio para dizer o seguinte para os meus conterrâneos.

O pretexto era explicar o Brasil para americano, para franceses dizer: "Olha, mirem-se no exemplo brasileiro, não é nem a desindustrialização ou seus resultados como o sociólogo americano está descrevendo, porque nós nunca chegamos ao que Estados Unidos foram até então, até a deslocalização, a globalização e a desindustrialização, que eles querem retomar agora. Nunca fomos isso".

Aí eu dizia para os franceses: "Vejam o que está acontecendo na França, está acontecendo um novo fenômeno. Quando esse fenômeno apareceu, vocês começaram a comentar os americanos, os sociólogos americanos que estavam comentando a decomposição social da sociedade vencedora da Segunda Guerra Mundial e que havia puxado o crescimento mundial e integrado, para bem dizer, no assalariamento, boa parte da população —white collars ou blue collars, tanto faz.

Os franceses estavam começando a prestar atenção no que estava ocorrendo nos Estados Unidos e vendo se não estava ocorrendo algo análogo na França, mas nunca usaram a palavra brasilianização e começaram a ver como havia muitas semelhanças entre o que estava acontecendo: como eles chamavam, a nova pobreza francesa, os novos pobres, os excluídos, que é uma expressão francesa, os que estão do outro lado da fratura social, que é outra expressão francesa, estava acontecendo e estava espelhando os Estados Unidos.

O principal era aquilo que um antropólogo francês, o Loïc Wacquant, chamou de a punição dos pobres, o encarceramento em massa, que era um privilégio americano, estava começando a acontecer na França também. Também uma população descartável, encarcerada e precarizada, eles compararam com os Estados Unidos. Mas como os Estados Unidos estavam se comparando com o Brasil, eu fechei o triângulo nisso e disse: "Olha, vocês franceses estão se brasilianizando também nesta acepção". Então, vamos começar a fazer o estudo comparado das nossas respectivas periferias.

Não deu outra: anos depois, as periferias francesas começam a entrar em efervescência, mas já vinham havia algum tempo. As do Brasil também, mas um outro tipo de efervescência mais parecida com o massacre, que nós sabemos, que é cantado em prosa e verso pelos Racionais. Aí, você começou a perceber que havia similitudes entre as "banlieues" francesas e as periferias paulistas, cariocas, pernambucanas. Aí, começou a ascender uma espécie de estudos comparativos sobre quem estava mais acelerado nesse processo de desagregação sem precisar usar a palavra brasilianização.

O primeiro francês que usa naquele momento, até onde eu sei, foi o Loïc Wacquant, que começou a vir ao Brasil com frequência. Ele era antropólogo, o campo de trabalho dele eram os Estados Unidos, ele escrevia sobre os guetos americanos negros e começou a frequentar o Brasil e estudar as favelas cariocas, se juntou a antropólogos e urbanistas cariocas e começou a pesquisar o Brasil. Pela primeira vez, em um artigo pronunciado na Anpocs, a conferência nacional da pós-graduação em ciências sociais, ele fez uma comparação entre três guetos —o americano, o francês e a favela brasileira— e falou pela primeira vez em brasilianização. Feitas todas as ressalvas: uma coisa são os Estados Unidos, outra coisa é a França, outra coisa é a favela carioca, que é um outro mundo diferente, mas há algo em comum.

Esse algo em comum, aí entro eu, é o fim de linha do capitalismo global, que começa com várias desmodernizações ou vários colapsos da modernização, para usar uma expressão consagrada por esse alemão, chamado Robert Kurz, que, ao contrário do que se dizia antigamente, começa pela periferia para chegar no centro. Começou primeiro com a desconexão da África Subsaariana, depois o colapso do socialismo soviético, do mundo soviético. Ele diz: "Agora vai chegar a vez de vocês aí no centro. Vocês não perdem por esperar". Demorou um pouquinho, porque ele falou isso em 1991 e esse esfarinhamento vinha aos poucos até implodir de maneira acintosa em 2008. Aí é impossível negar, foi por onde eu entrei.

O meu público, na verdade, eram os brasileiros que, naquele momento, achavam que as cortinas do futuro estavam finalmente chegando, que as promessas dos nossos grandes pensadores desde os anos 1930 estavam em vias de se completar e que, finalmente, o Brasil como uma sociedade coerente, que nós costumamos chamar de nação, sociedade nacional e sociedade nacional do trabalho, que havia começado a pintar, dar o ar de sua graça no fim dos anos 1930 com Getúlio Vargas, finalmente se completaria e que, em um certo sentido, mesmo a destruição privatizante do FHC tinha sido um tijolinho nessa construção.

No momento em que essa cortina desse espetáculo do futuro se abre, eu venho e digo essas barbaridades. Obviamente, não caiu muito bem nos poucos que leram. A ideia era essa: o nosso futuro chegou, ele é esse, o capitalismo não tem mais nada a oferecer e a fórmula soviética está historicamente rifada por mil razões, nem todas coincidentes. Portanto, comparar Estados Unidos, França, Brasil —poderia ter comparado com outros países, se eu conhecesse melhor, enfim, não ia me aventurar. E eu: mirem-se no exemplo americano, mirem-se sobretudo no nosso exemplo, nossa fratura que vem da colônia e vocês vão perceber que essa fratura é constitutiva e faz parte do DNA do capitalismo. O capitalismo, quando começa como sistema, precisa de uma periferia. Sem centro, sem periferia, sem metrópoles, sem colônias, ele não vive. Quando ele chega ao seu fim, prestes a explodir, é quando elas se tornam indiscerníveis. Portanto, há uma periferização do centro e a periferia está cada vez mais parecida com o centro.

Essa ideia está mais ou menos no artigo para dizer: "Olha, franceses e brasileiros, pensem um pouco, o nosso destino agora é comum e é um destino terminal do ponto de vista capitalista, o capitalismo tende a isso, de modo que essa fratura é insanável". A convergência, isto é, que os mais atrasados alcancem os mais adiantados na corrida, é um mito de fundação do capitalismo, mas ela acontece no desastre comum.

A ideia do artigo é essa: contar que ela aconteceu. Esse é o futuro, esse desastre é comum, agora o que se faz diante disso? As soluções clássicas estão ultrapassadas: socialistas, social-democratas, de gestão, liberal, aí não tem solução. Liberal simplesmente é tocar um negócio e de maneira pragmática, fazer o retorno do investimento existir. Tudo bem, a menos que o planeta exploda antes.

Como vê a manifestação dessa ideia de brasilianização hoje? Porque nesses 20 anos, você citou alguns exemplos, houve o governo do PT, a crise financeira de 2008, Junho de 2013, a vitória de Bolsonaro em 2018 e, naquele momento, você estava apontando o Brasil como um laboratório da mundialização e, hoje, o Brasil parece mais como a ponta de lança da expansão da extrema direita global, apesar da vitória do Lula na última eleição. O bolsonarismo de alguma maneira atualiza essa ideia de brasilianização do mundo? Eu diria que. O conceito de brasilianização perde o seu poder de revelação, que eu acho que tinha há 20 anos, quando esses autores americanos e europeus começaram a usar a palavra.

Agora, ele tende a se banalizar, porque pensando no Bolsonaro ou no fato de que foi o primeiro governo estritamente de extrema direita que o Brasil constituiu, o bolsonarismo é uma parte relevante, de maior interesse de estudo, não só nosso, mas no exterior, de um surto de extrema direita inédito em relação, inclusive, ao fascismo histórico, e que aparece em vários lugares ao mesmo tempo. No poder, apareceu em primeiro lugar nas sociedades pós-soviéticas como a Hungria, a Polônia, a República Tcheca, a Eslováquia, Bulgária, Romênia. Aparece por lá não por acaso, tem que ver com a era soviética, e também em outros lugares.

Poderíamos falar, por exemplo, em israelização do mundo, que é o que está acontecendo. Se, nesse momento, eu disser onde é que está a extrema direita no poder prestes a dar um salto mortal no escuro, é Israel. Uma autora chamada Eva Illouz, uma judia francesa nascida no Marrocos, tem um artigo dizendo: "Olha, esse paisinho pequenininho lá perdido no Oriente Médio, que é apenas uma espécie de cabeça de lança militar americana, como costuma ser carimbado, ele é isso, mas é muito mais. Ele é o laboratório do que vem por aí, que é justamente um governo de extrema direita". Isso ela escreveu anos antes do Bibi, do Netanyahu se embrenhar nessa desmontagem do Poder Judiciário. Vocês podem se ver nesse espelho israelense, porque é justamente uma extrema direita apoiada por uma classe social relegada, que são os imigrantes judeus que vieram do norte da África e do Oriente Médio. Não é uma extrema direita ditatorial que se impõem pelo poder das armas, é uma direita popular.

Há vários capítulos dessa direitização do mundo, desde os anos 1990, os anos 10 desse século, várias ondas até culminar no Trump, no Brexit, depois no Orbán, no Erdogan, no Bolsonaro, na última encarnação do Netanyahu e por aí vai, sem esquecer da grande reviravolta hinduísta do Modi, na Índia. Então, o Bolsonaro é um elo dessa cadeia, um elo proeminente, quase ganhou a sua reeleição. Agora, ele está meio na berlinda pelos fiascos que cometeu, pode ser estratégico ou pode ser simplesmente incompetência —e, se for incompetência, será substituído. Mas o bolsonarismo, a extrema direita brasileira com força, como nós estamos vendo neste momento, está aí e é um protagonista dessa faixa toda. A ideia de brasilianização não faria mais sentido. São vários pequenos Brasis ou vários pequenos Israéis ou várias pequenas Húngrias. Outro dia, tinha um artigo da Lúcia Guimarães na Folha falando do Ron DeSantis na Flórida: é uma Hungria com crocodilos, já começou. A Flórida já é uma pequena Hungria, já é um Israelzinho. O Ron DeSantis está batalhando para se transformar em um Trump 2.0.

O Brasil é uma onda importante dessa maré, então brasilianização nesse sentido não faria mais sentido. É apenas o editor, o Milton Ohata, que resolveu ressuscitar esse texto como uma plaquete. Ele achou: "Tem coisas aqui antecipadas". Não sei, ele que se explique, eu estava quietinho, dormindo no meu livro, eu não fiz nada [risos].

Com certeza tem. A gente começou a falar do bolsonarismo, eu queria passar para um outro ponto. Eu vi uma entrevista e uma live sua na época das eleições, e você cita os trabalhos do Rodrigo Nunes e do Miguel Lago e avança essa ideia de que o Brasil de hoje não é uma sociedade de classes, mas parece muito mais como uma sociedade de empreendedores de vários portes, muito associada ao universo religioso, no mais das vezes pentecostal ou neopentecostal, e também muito ligada à delinquência, das contravenções consideradas menores —sonegar um imposto aqui, explorar uns trabalhadores ali— até o crime organizado mais pesado —as facções e as milícias. Consegue detalhar esse raciocínio? Porque uma sociedade de empreendedores e de que forma ela se liga ao bolsonarismo? Essa ideia não é minha, eu tenho que glosar os autores dessas ideias. No caso, o Miguel Lago e o Rodrigo Nunes, que me parecem os que têm mais ideias originais a respeito do que é o bolsonarismo fora dos clichês tradicionais sobre extrema direita, fascismo, obscurantismo, enfim, clichês também sobre os evangélicos, e o Gabriel Feltran, que foi o primeiro a escrever coisa nova sobre bolsonarismo dizendo: "Olha, é um movimento popular, vem de baixo".

A classe média e a classe média alta estão surfando nessa reviravolta popular, que ele chama de revolução do jagunço, empoderamento dos intermediários. O Rodrigo Nunes também vai nessa direção e fala, inclusive, nos capatazes das plantations, o equivalente disso historicamente. O Miguel Lago insiste no fato da mobilização dos perfis de rede social. Esse perfil é uma persona que está conseguindo essa proeza política que depende de várias condicionantes sociais. Esses perfis estão atuando offline, e a grande atuação desses perfis offline foi o dia 8 de janeiro deste ano, segundo o Miguel Lago. A novidade do bolsonarismo é que é a primeira vez que o nosso presidente é um perfil, e tem o lado desse empreendedorismo, uma dimensão estrutural do capitalismo na fase atual de desagregação. Não são mais as grandes superfícies e os fronts de trabalho; os grandes conflitos de classe se esfarinharam e os sobrantes, os sobreviventes se engalfinham como empreendedores. Têm os pequenos, os médios, os grandes, os grandes predadores, as multinacionais, é outra coisa. Por exemplo, no nosso caso aqui, a mineração, que são os grandes empreendedores que estão, de fato, implodindo o Brasil.

O Gabriel Feltran diz que é uma rebelião que aconteceu na periferia e é enquadrada por pastores, por policiais, na verdade, diz o Feltran, é o empoderamento das forças policiais, das organizações coercitivas, sejam essas forças organizações oficiais ou não oficiais. Pode ser uma milícia, a Polícia Militar, a Polícia Civil, a Polícia Rodoviária, podem ser muitas coisas. É o homem forte que parasita uma sociedade e uma economia que tende a ser, nos seus polos, uma economia de pilhagem. Esses três autores começaram a dizer, sobretudo o Gabriel, e estão desdobrando coisas. Há uma novidade nessa grande cadeia de extrema direita e nós estamos vendo mais ou menos cercando o mundo.

Nós temos uma peculiaridade: essa pequena delinquência. Obviamente, deve ter na Hungria, em Israel, no mundo inteiro, nos Estados Unidos, na Inglaterra, mas aqui é diferente. Aí entra alguma coisa que tem que ver com a América Latina. Não há um acre quadrado que não esteja envolvido em ilegalismo de toda sorte. O México é um narcoestado, a América central não existe mais, é um corredor de passagem, barbarizada, é um corredor polonês de imigrantes com pequenas fortalezas que são ditaduras, como a da Nicarágua, ditaduras ensandecidas. O Panamá, que é um pouco uma espécie de estação de respiro, porque tem as rendas do canal. Ora, esse país que desce do México e vai até a Patagônia, passa pelo Brasil, pela Colômbia, está agora pegando fogo no Peru.

Quando chega no Brasil, há uma ramificação dessas delinquências. A novidade do Brasil é que a ramificação dessas pequenas delinquências que, somadas, podem devastar uma Amazônia, podem dirigir os rumos do agronegócio, podem financiar uma destruição de Brasília, mesmo que sejam pequenos empresários que fretam ônibus, mas os pontos todos se ligam. O diferencial do Brasil é que a família governante do Brasil fazia parte dessa rede de delinquência, e a joia da coroa, com o perdão do péssimo trocadilho, aconteceu nessa semana. É um negócio inacreditável uma família presidencial de contrabandistas, ligando militares, Poder Executivo, Receita Federal, todos empenhados. Quando você imagina o que foi a privataria FHC, para usar o lugar comum, com isso, é muito desproporcional. É pequena delinquência, só que essa pequena delinquência somada devasta um país.

Por exemplo, você veja o caso de Roraima. O que está acontecendo em Roraima? Todo o mundo está faturando com a crise humanitária, obviamente, politicamente, e tem os outros que estão na defensiva e não ousam falar: são os militares, o agronegócio, os políticos que apoiam os arrozeiros, que apoiam o garimpo em Roraima e assim por diante. Mas o que ninguém quer falar é que os progressistas que ganharam as eleições em outubro do ano passado estão transformando aquilo em um simulacro de guerra contra as drogas. Porque são 50 mil pessoas, Roraima é um estado do garimpo, dos arrozeiros e é uma base militar. Garimpo, pequeno, grande, médio, igualmente predadores. Eu estou deixando as grandes mineradoras, que estão lá no Pará. Militares e políticos formam um bloco só, e Roraima é isso.

Ora, no momento que os progressistas, os humanitários, os humanistas entram em cena, ganharam a eleição, "vamos fazer alguma coisa". Começa pelo extermínio dos yanomamis, o mundo inteiro, uma unanimidade. O que nós vamos fazer? Vamos tirar os garimpeiros de lá. O que significa tirar os garimpeiros de lá? É uma espécie de supercracolândia. Vão reeditar, no limite, uma guerra às drogas. Se quiser, pode até haver financiamento e inteligência militar americana para combater o garimpo ilegal na Amazônia pois interessa a preservação da Amazônia. Sendo que desses 50 mil no sistema da garimpagem, 90% é povo descartado por essa brasilianização do capitalismo que aconteceu há 25, 30 anos atrás. O que se faz com esse povo descartado? É como o pessoal do tráfico nas favelas das grandes aglomerações brasileiras, é uma carreira, é um emprego.

O que eles vão fazer? Eles vão alimentar uma eterna guerra ao garimpo ilegal, como se faz a eterna guerra às drogas, quando nós sabemos que ela não resolve absolutamente nada. A guerra às drogas tem 50 anos de idade e é apenas uma forma de controle social. Você já começa lá em cima, em Roraima, você imagina o resto da Amazônia. Quantos militares falam: "Quem está tocando fogo na Amazônia não somos nós. Nós gostaríamos de fazer outra coisa, inclusive inundar a Amazônia, transformar em um grande lago". É o projeto dos militares na ditadura, são loucos mesmo.

É o povo. Quando eles falam o povo —e, portanto, esse povo ora nos serve como eleitores, ora nos serve como predadores de Brasília, ora nos serve como acampadores dos quartéis, mas é popular. É caboclo, é população ribeirinha, são indígenas que estão lá nessa garimpagem. O que você vai fazer? Vai matá-los? Vai expulsá-los? Você empurra para o mar? Portanto, é a guerra interminável às drogas nas periferias que é uma indústria. Tudo interessa ali, menos acabar com as drogas. Essa guerra às drogas alimenta meio mundo, das milícias a senadores, sem falar nos grandes traficantes que nunca estão aqui, estão no resto do mundo.

Essa é a particularidade do Brasil neste momento de desintegração, quando justamente a Amazônia aparece como o futuro do mundo, nós voltamos a ser o futuro do mundo graças à Amazônia, só que a Amazônia já está corroída por isso. Não adianta ficar com satélite monitorando o desmatamento e conseguir fundos alemães e noruegueses para manter uma sociedade de baixo carbono em regiões que vão viver de quê? De créditos de carbono. Aí, eu já eu já vou começar a interpretar o que seria o governo Lula, mas não é o caso agora.

Não, queria passar para o governo Lula mesmo porque, em uma dessas entrevistas, me chamou muito a atenção, você disse que esperava tudo e não esperava nada do governo Lula e fez uma crítica a essa ideia de que o PT se comportou como o síndico de um condomínio de várias facções políticas e se limitou a reduzir os danos, sem um projeto, sem um horizonte de transformação social, qualquer coisa mais profunda. Como está vendo, à luz disso, o governo Lula no começo do terceiro mês? Eu acho que são bons, são inteligentes, preparados, razoavelmente civilizados —se o termo de comparação for o bolsonarismo, aí todo o mundo é civilizado. Mas, não é que eu tema, eles não têm outra alternativa. Eles vão fazer mais do mesmo, não tem como, só com meios mais precários ainda, porque não terão mais o bônus do boom das commodities.

A retração econômica é mundial, pelo menos no primeiro mandato. Se ele conseguir um segundo mandato, pode ser que a coisa mude, mas eu acho que a estratégia continuará sendo a mesma: é redução de danos. Nós sentimos na pele o alívio da vitória do Lula, apertadíssima como foi. Portanto, é uma vitória completamente relativa. Na verdade, não foi uma vitória do Lula, foi uma proeza porque ele lutou com forças adversas, que era um Poder Executivo do Estado delinquente, com Forças Armadas, a média da magistratura, enfim, tudo que nós sabemos. Mas foi uma vitória assegurada porque o Zé [Joe] Biden e uma parte da Europa Ocidental tinha interesse em que ele ganhasse e que o Bolsonaro era uma roubada.

Foi o que segurou os militares, o pragmatismo. Militares, por definição, são golpistas e, mais ainda, são bolsonaristas. O nosso atual ministro é apenas um legalista por conveniência: "Nesse momento, é mais conveniente para minha carreira ser um legalista aos olhos do Biden e da Europa Ocidental e da opinião pública em geral do que é ser aquilo que eu penso". Isso não vem ao caso.

O que eu estou dizendo é que, se você me disser: "Qual é o projeto do lulismo?". Eles continuam sem nenhum projeto, como não tinham em 2003. Dois mil e três era um discurso progressista, desenvolvimentista, redistributivista. Continuará sempre assim: proteção social, tudo pelo social, tudo pelo emprego, não tem nada de novo. A novidade, de fato, que o lulismo fez e que nós não prestamos atenção e não soubemos valorizar, só valorizamos quando veio o bolsonarismo, foi essa redução de danos. Isto é, o lulismo foi um anteparo para essa destruição inerente ao capitalismo nessa sua fase atual destrutiva, em que ele destrói o seu próprio fundamento, que é a fonte do valor, o trabalho vivo.

Ao mesmo tempo, não se desfaz dessa forma fetichista, que é a relação pela mercadoria. Daí essa máquina infernal que vai sobreviver ao fim físico do mundo pelas mudanças climáticas. O capitalismo não acaba por si mesmo, ele vai continuar a destruir, mas o mundo acaba antes. Esse é um prognóstico.

O governo Lula fez aquilo que não imaginava que fosse fazer: reduzir danos. Isto é, ele comprou tempo para postergar cada vez mais esse encontro de contas, esse ajuste de contas que será feito no fim. Como ele comprou tempo? Ele tinha dinheiro do boom das commodities. Ele pôde irrigar com cash, com dinheiro vivo, essas pontas mais explosivas do tecido social, como se diz no jargão, que não existem mais. Então, ele irrigou as periferias de empregos, de dinheiro, programas sociais muito bem-planejados e desenhados. Funcionaram. Esses programas sociais foram desenhados para segurar as pontas, para o muro não ruir, e funcionou muito bem —todas as contrapartidas, muito bem-desenhadas—, é "best practice" no mundo inteiro. Como controlar os pobres sem mudar a sociedade, esse é o exemplo do Brasil. A Índia copia, o Paquistão copia, a Indonésia copia, a África copia. Todo o mundo quis fazer igual até que veio o bolsonarismo e destruiu isso.

O bolsonarismo apressou o fim do mundo, em certo sentido, porque ele destruiu esse anteparo de gestão desse caos terminal no qual nós vivemos, que se chama capitalismo e que o lulismo estava contendo dizendo que estava fazendo outra coisa: avançando o processo social, desenvolvimento, emancipação, os direitos. Ninguém discorda disso. Pode falar à vontade, mas estava fazendo isso, e eu acho que isso foi muito bom para o Brasil. Foi bom nesse sentido: você pega a cracolândia e reduz danos. É ótimo, ninguém é contra, precisa ser muito energúmeno, de extrema direita, para passar o trator em cima.

Eles fizeram isso com sucesso e um sucesso tão grande que precipitou a queda da Dilma, que eu acho que foi uma grande manobra de luta de classe. "Esses caras estão muito fortes, estão ganhando todas as eleições, vamos tirá-los do caminho". E tiraram em uma boa, sem disparar um tiro e cumprindo a lei. Isso se chama luta de classes, que a esquerda esqueceu.

Aí veio o pesadelo bolsonarista, que é o fim dessa política de redução de danos, que é pressão para que o reino da delinquência, portanto o mais forte, da milícia ao presidente da República, passem a mão naquilo que lhes convém. Pode ser uma farinha de cocaína, pode ser uma joia do rei da Arábia Saudita. Está tudo no mesmo bolo da rapinagem. Era isso que estava acontecendo e, portanto, o grande capital achava que ia tirar sua lasquinha também, porque para ele não teria mais limites, mas ele viu que teria limites —um desses limites é físico, precisava de um planeta para explorar.

Terminou isso, o Lula volta, porque os americanos mandaram N recados: "Olha, não avança o sinal porque nós fechamos a torneira de vocês, vocês vão ser um câncer ou serão párias mundiais". O ministro disse, com todas as razões, que não havia possibilidade de golpe porque seria uma loucura. "Nós estaríamos no ostracismo imediatamente em 48 horas, insustentável. Nós teríamos que governar e nós não sabemos governar. Nós viemos aqui para outra coisa, para ganhar um salário de 1 milhão", era para isso que eles estavam aí.

O Lula vai fazer a mesma coisa [que nos mandatos anteriores]. Qual é a possibilidade de o lulismo, entre aspas, dar certo? Adiar cada vez mais a volta da extrema direita, que está aí preparando-se para voltar. Fizeram um ensaio geral: pela primeira vez, um governo com uma semana teve uma tentativa de golpe de Estado, meio tabajara, porque os militares pensaram duas vezes, tinha o veto internacional, diplomático, então eles deixaram o pessoal no sereno. Isso significa que eles estão reforçando os escalões médios do antigo bolsonarismo, que vão começar a se auto-organizar. Pode apostar: os 1.500 que vão sair da Papuda, processados ou não, vão sair radicalizados, com novos lideranças, com um novo tipo de organização.

O que eu imagino que está no consciente ou no subconsciente dos formuladores de políticas lulistas está o varejo do toma lá dá cá com os Liras da vida. Vão engoli-los, mas faz parte, eles já conviveram com esse pessoal desde o tempo do Mensalão. Eles estão carecas de saber como se lida com essa bandidagem parlamentar. Não é esse o problema.

O problema é que, para que ele continue a afastar o perigo do retorno, do "second strike" da extrema direita, é necessário que tenha dinheiro. Para ter dinheiro, não tem mais commodity, tem o que? A Amazônia. Eles vão fazer aquilo que o Bolsonaro sempre disse que todo o mundo queria fazer com a Amazônia: chantagear o mundo. "Olha, se vocês não financiam, se não vêm investimento, se vocês não viabilizam alguma coisa que é um arremedo de economia com juros baixos, crescimento, emprego, mais ou menos, por um tempinho só, vocês vão fuder com tudo aqui, esse pessoal volta".

Então, vou vender o peixe de que nós somos o futuro do planeta, porque a Amazônia está conosco e nós vamos passar a gerir a Amazônia através do quê? De crédito de carbono, entre outras coisas. É como se fosse o dinheiro que foi para o Bolsa Família, você vai comprar tempo agora para evitar esse retorno do que é a realidade bárbara social brasileira, que não desapareceu por causa de 2 milhões de votos a mais em 31 de outubro. Ela está aí, então é preciso comprar tempo, e o dinheiro para comprar esse tempo tem que vir de alguma coisa, eu digo de maneira muito grosseira, o crédito do carbono. Tem que ser transformada em um negócio rentável, em termos de investimento, a Amazônia, que nós vamos proteger.

Mas já começaram a proteger de maneira errada. Roraima e as terras indígenas já estão sendo protegidas como quem está fazendo um combate de guerra às drogas. As periferias brasileiras provam que as guerras às drogas não dão em nada, então eles vão transformar Roraima em mais uma periferia brasileira que toda vez tem alguém prometendo combater o garimpo ilegal, a madeira ilegal, contrabando, os traficantes que estão lá, como se promete em todas as favelas brasileiras, do Rio, de São Paulo, no Brasil afora, sem sucesso há 40 anos. Tem alguma coisa aí que parece um círculo vicioso.

Ora, nós temos que apostar na duração desse círculo vicioso para ver se, nesse meio tempo em que o fim não volte, apareça alguma ideia. Até agora, não há condição de aparecer, porque as pessoas têm que apagar incêndios diários. Eu, digamos, não estou apostando contra o governo, pelo contrário, nunca fui tão a favor que esse troço funcione por alguns meses, porque eu não tenho certeza que eles vão chegar vivos ao fim do ano, quanto mais cumprir um primeiro mandato. Já houve uma tentativa de golpe na primeira semana.

Eles não têm as Forças Armadas, as Forças Armadas estão sublevadas. Elas estão sendo compradas, subornadas, não existe controle civil, nem nos Estados Unidos, sobre os militares. Esse é um dos problemas, e os militares têm programa. Esse programa é o mesmo de 1964. Veja tudo o que eles escreveram sobre Amazônia. Eles têm ideias sobre a Amazônia, sobre índios, quem são as novas ameaças e por aí vai.

Onde é que está a nossa força? Ele mal venceu, e já querem chutá-lo. Tem um golpe na primeira semana, e todos os editoriais acham que o barbudo tem que ajoelhar e beijar a cruz do Banco Central. O Banco Central, qualquer aluno —nem de graduação, de cursinho— sabe que, se juros altos segurassem inflação, não era preciso o Plano Real, que foi feito com uma certa engenharia sofisticada. Todo o mundo sabe o que está acontecendo, e os caras querem insistir no mesmo. A mesma máquina econômica que gerou a catástrofe, que alimenta, que é o combustível dessa desintegração, não tem como. Ao mesmo tempo, eles não querem o Bolsonaro, todos eles são antibolsonaristas. Estão chamando uma nova leva.

Essa nova leva é cada vez mais incontrolável porque é o meio do bolsonarismo que foi tornado órfão pelo exílio do Bolsonaro e pela ducha fria dos militares, que durante quatro anos incentivaram e depois na hora H, "não contem conosco porque é muito complicado, o golpe não é assim, não é mais o caso de dar golpe". Estão órfãos, mas como eles representam uma força social imponente, a máquina social gera essa extrema direita neste momento, eles vão se reorganizar de outra maneira e vai aparecer algum líder.

O problema é que tem que ser um líder carismático. Se não for carismático, não adianta nada, e por enquanto só tem dois disponíveis no mercado. Um está nas suas trapalhadas em Brasília, para lá e para cá, falando pelos cotovelos o que deve e o que não deve, e o outro está escondido na Flórida, mas perdendo o seu carisma a cada dia que passa. Mas, em certo momento, ele pode voltar. Basta ter 100 mil pessoas o esperando no aeroporto e pronto, recomeçou a opereta.

Paulo, para a gente encerrar: enquanto você falava, eu fiquei lembrando de uma crítica que você costuma fazer sobre a incapacidade da esquerda de falar com o evangélico, o morador da favela, da periferia, o trabalhador precarizado etc. Você sempre critica a ideia de que a esquerda está sempre dizendo: "Vai ficar tudo bem, a gente vai dar X por cento de aumento real no salário mínimo no mês que vem, então confia na gente, vota na gente". Enquanto a extrema direita está com aquele discurso: "O mundo é uma selva, vai acabar em breve, então você precisa comprar uma arma, entrar para o clube dos fortes e vir ganhar dinheiro no negócio da pilhagem". É mais ou menos essa a mensagem que você já apontou em outras ocasiões. O que dá para para imaginar que vem pela frente nessa conjuntura? Você está dizendo que muito provavelmente não há condições de o PT e o Lula fazerem algo diferente que não seja redução de danos, enquanto esse discurso de extrema direita parece que ganha força e se espraia. Aonde isso nos leva? Bom, se você fizer essa pergunta para a Barbara Walter, que deu uma entrevista para a Folha de S.Paulo, ela vai dizer: guerra civil. Os únicos lugares em que uma guerra civil realmente é possível de acontecer são os Estados Unidos e o Brasil.

Os Estados Unidos terão eleições antes do fim do mandato do Lula e é possível que o Partido Republicano, que virou uma facção —e a teoria da facção dela é muito importante— e as guerras civis começam com a transformação dos grupos políticos partidários em facções. Melhor ainda se elas forem racializadas, etnizadas e transformadas em facções religiosas. Então, ela vai começar nos Estados Unidos: se começar a haver o que ela prevê —depois ela tem lá os paliativos dela, aí não diz nada: é diálogo, tolerância, aqueles trololós de sempre, "confie na razão, na razoabilidade das pessoas".

Mas a descrição dela é impressionante. Se começa lá em cima, o poder irradiador disso é uma internacional. Está se criando uma internacional de extrema direita e, no Brasil, baseada em uma economia de pilhagem. No topo do poder, as organizações coercitivas armadas, de preferência fardadas, e a multiplicação de várias soberanias. É um pouquinho como se nós imaginássemos uma espécie de explosão com vários estilhaços de pequenas Venezuelas, onde quem dão as cartas são os militares. Já são os próprios milicianos. Eles estão em todos os tráficos: o diamante e a cocaína são com os militares. Então podemos imaginar isso. Isso é o fim, onde nós vamos terminar.

Ora, essa realidade subjacente produz esses grupos sociais com os quais nós não conseguimos conversar mais. Nós, progressistas, porque a nossa conversa progressista não diz nada para eles, porque nós já começamos tendo excluídos eles da civilização: eles são atrasados, são manipuláveis, são broncos, são pobres, são analfabetos, são negros e tudo o que você possa imaginar, são obscurantistas, são contra a ciência, e por aí. Por exemplo, eu tenho 80 anos, um certo passado político como todo o mundo dos anos 1950, 60, abertura e tal e, queira ou não queira, falo a linguagem dos progressistas, dos melhoristas, mesmo que faça crítica por escrito. Eu me pergunto: "O que eu vou falar para essas pessoas?". Você viu o filme "#eagoraoque", do Jean-Claude Bernardet?

Não vi. Veja, porque o filme é muito constrangedor para nós. Nós sentimos vergonha alheira, porque os intelectuais que o Bernardet põe lá para conversar com os movimentos sociais da periferia, os identitários, são esculhambados do início ao fim —e esculhambados de maneira injusta porque são pessoas corretas, inteligentes, que têm uma visão crítica do Brasil, mas não têm como responder. "Vocês não estão com nada".

Aí você vai conversar com um coletivo em uma periferia no extremo sul [de São Paulo]. Esse coletivo, mais ou menos todo o mundo vestido igual, pensando igual, com os mesmos clichês "nós contra os boys". Você começa a falar: "Nós, boys, sou branco, sou universitário, sou da USP, mas nós precisamos unir as nossas misérias e fazer uma frente única anticapitalista". Aí os caras: "O que você está pensando da vida, meu caro? Você quer ensinar para a gente como se faz, como se sobrevive, como se enfrenta os caras aqui no pedaço? Vai te catar, vai procurar a tua gente, não enche o saco, nós é que vamos dar a lição para você".

Diante disso, você vai falar o que? Você volta para casa, baixa sua biblioteca e começa estudar as várias variantes de insurreição popular na história [risos] da Europa Ocidental nas últimas duas décadas e não encontra nada no seu repertório que possa atender, que possa dizer "o que eu vou falar para um pastor". "Vou lá em uma igreja, peço uma reunião, quero falar com o senhor pastor, vamos conversar a respeito do seu pedaço, os crentes, a fé, o que se passa no Brasil e tal". O pastor em um certo momento —se não for fanático, se não for um empreendedor de rede social, portanto já um vigarista, se for um pastor de boa fé— ele vai dizer: "Esse cara errou de planeta, o senhor não quer voltar para casa?".

Porque não falamos mais a mesma língua. Não sabemos como abordá-los. Na Folha, há um bom rapaz, o Juliano Spyer, li o livro dele, "O Povo de Deus". Ele diz o seguinte: "Você, progressista de esquerda e marxista, é monoglota, você tem que aprender outras línguas, e uma das línguas é a dos evangélicos, para poder conversar com eles senão nunca vai".

O Mano Brown sacou isso, mas o Mano Brown já é um empreendedor bem-sucedido de rap. Ele é uma potência cultural, já está na história, está museificado, bustificado. Para ele, a história já está completa. Mas ele está dizendo: "Olha, se vocês não conseguirem falar com o pessoal lá embaixo, babau, vocês perderam o jogo".

A extrema direita está conseguindo. Por quê? Aí eu complemento com isso: porque eles dizem a verdade. Se você chega com um discurso progressista lá embaixo, todo o mundo acha que você ou é um idiota ou está querendo enganá-los e, portanto, tem que levar um pé na bunda imediatamente, "vai embora para casa". Agora, se você chega lá com o discurso bolsonarista, eles vão falar: "Olha, esse cara sabe o que está fazendo, talvez ele queria vantagem, mas ele sabe o que é isso. Aqui é lei do mais forte, do empreendedor, é homem e assim por diante. É isso que está acontecendo: o capitalismo é para poucos e para quem consegue se virar. Essa é a nossa vida diária".

Esse cara está falando a verdade, embora em benefício próprio ou não. Ele não está tentando nos enganar. Pode ser que ele esteja tentando nos manipular. Ele não está nem manipulando, ele está fazendo outra coisa: ele está conseguindo mobilizar e engajar através desse grande acelerador, como diz a Barbara Walter, que são as redes sociais. Diante de um discurso que é acelerador, aglutina, organiza, mobiliza e põe gente na rua: esse era o sonho de consumo —ninguém pode dizer isso em voz alta— do pessoal de Junho de 2013 quando eles sambaram em cima do telhado do Congresso.

Não era depredar o Congresso. Para eles, não significa nada depredar o Congresso mas, imaginariamente, eles pensavam o mesmo bem ou o mesmo mal do Congresso e da classe política que a extrema direita pensa. E o Lula nos seus velhos tempos de sindicalismo, "400 picaretas no Congresso", claro que ele queria depois negociar com os 400 picaretas porque ele sabe que eles são picaretas e sabe como negociar com picaretas, mas o que a esquerda queria era "vamos transformar o Congresso no nosso Palácio de Inverno, vamos tomar de assalto". Aquilo que aparece no filme do Eisenstein, quando eles tomam o Palácio de Inverno. O proletariado desce nas adegas no Palácio de Inverno. O que eles fazem? Eles bebem o que podem e destroem o resto das garrafas. Tem uma adega de 5.000 garrafas de vinhos mais bem-escolhidos da Europa. Eles destroem tudo.

Quando nós éramos de esquerda, há várias gerações, a nossa ideia era entrar em Brasília e destruir tudo. Aí não tem nada a ser preservado. O que é o Supremo a ser preservado? O Supremo é um bando de oligarcas, inclusive no sentido russo do termo, 11 que fazem o que bem entendem e se arvoraram o Poder Moderador, por isso que disputam com os militares.

O que é o nosso grande xerife, o herói democrático do momento, o senhor Xandão? Pergunta para um secundarista, que agora também já deve estar com 20 anos, mas quando ele tinha 14, 15 anos, quem era o Xandão? "O Xandão era aquele careca que mandava bater na gente, que entrava a pontapé nas escolas sem mandato judicial e mandava desocupar. Esse é o democrata que está defendendo a democracia. Então estamos conversados", diria o secundarista coerente, sobre o que nos aguarda daqui para a frente. Esse discurso do Xandão muda de sinal em pouco tempo, e vocês serão a bola da vez depois de ele ter extirpado a ralé bolsonarista, que está atrapalhando, mas virá uma outra geração, e que vão se juntar lá em cima.

A tarefa histórica do PT seria o que? Se o PT tivesse consciência —ele tem consciência— nossa tarefa histórica nesse momento, como se dizia nos velhos tempos, é refazer a direita. Nós temos que fazer uma direita democrática, que respeite a legalidade de um Estado republicano e que não se alinhe, de preferência, com a extrema direita. Se não for possível, se não convenceu, se eles não se moverem, nós seremos essa nova direita, mas aí tem que combinar com os russos —não os russos lá de cima, mas os russos daqui. Eles tentaram ser a nova direita civilizada em 2003, 2004 e foram chutados em 2015, 16. Agora, vamos fazer a mesma coisa novamente.

Não sei, espero que demore um tempo para isso acontecer, mas presta a atenção, veja só onde estão os papéis: para nós, é uma coisa abominável o que aconteceu no dia 8 [de janeiro], era o nosso sonho, era o sonho da esquerda desde a Comuna, passando pelo [19]17 russo. É isto: é o poder da burguesia encarnado pela melhor arquitetura modernista brasileira, está lá feita. E as pessoas querem fazer mais poroso, menos poroso, que tenha mais público, mais transparente, menos transparente, assim, assado. Tem paciência! Assim não dá, tem que compreender, mesmo que seja horroroso.

Toda vez que o fascismo avança, a esquerda perdeu um pouco de energia. Quem disse isso foi o Walter Benjamin. Não quero usar isso como argumento de autoridade. O fascismo hoje tem o poder, tem a potência de fazer isso. Parece que nós ganhamos. Ganhamos coisa nenhuma, eles estão se reorganizando.

O Ilustríssima Conversa está disponível nos principais aplicativos, como Apple Podcasts, Spotify e Stitcher. Ouvintes podem assinar gratuitamente o podcast nos aplicativos para receber notificações de novos episódios.

O podcast entrevista, a cada duas semanas, autores de livros de não ficção e intelectuais para discutir suas obras e seus temas de pesquisa.

Já participaram do Ilustríssima Conversa Eliane Brum e Maria Rita Kehl, convidadas para o episódio comemorativo dos cinco anos do podcast, João Moreira Salles, autor de um livro sobre o modelo predatório de ocupação da Amazônia, Ailton Krenak, que abordou a tragédia do povo yanomami, Gabriela Lotta e Pedro Abramovay, que discutiram os papéis de burocratas e políticos em uma democracia, Felipe Loureiro, que analisou as relações entre EUA e Rússia depois do início da Guerra da Ucrânia, Denise Ferreira da Silva, para quem a violência racial é um pilar da modernidade, Letícia Cesarino, antropóloga que expõe como algoritmos favorecem o populismo, Roberto Moura, que relançou clássico sobre a história negra do Rio, Celso Rocha de Barros, que falou sobre a história e os desafios futuros do PT, Christian Lynch, autor de livro sobre Bolsonaro e o populismo, entre outros convidados.

A lista completa de episódios está disponível no índice do podcast. O feed RSS é https://folha.libsyn.com/rss.

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