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Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

Susto em operação nos fez desistir da luta clandestina contra a ditadura

No meio do caminho, o pneu do carro furou e pensamos que seríamos levados para o Dops

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Denise Cabral de Oliveira

Psicanalista, mora no Rio de Janeiro

Éramos namorados desde 1967. Militávamos na mesma organização de esquerda, clandestina, para derrubar a ditadura e também pelo socialismo. Ele na ala universitária, eu na secundarista. Jovens leitores ávidos e, ambos, iniciantes na vida sexual. O que vou contar aconteceu em 1969, um mês após o AI-5, o ato institucional que implantou de vez uma ditadura sangrenta no Brasil.

Ele estudava sociologia e eu acabara de ingressar na faculdade de economia.

Fomos então designados para uma tarefa, a princípio, fácil: fazer o "levantamento" de duas fábricas no subúrbio do Rio de Janeiro. Levantamento era o nome para ir, rondar pelos locais e fazer um relatório descritivo: medidas, portas, janelas, muros, circulação de pedestres e de veículos à volta, saída dos trabalhadores, revista, presença de seguranças (naquela época em geral inexistentes). Isso seria usado em ações das organizações: panfletagens, comícios relâmpago, colagem de cartazes.

A tarefa seguinte que nos deram foi colar cartazes na porta de três fábricas dessa mesma região, com propaganda contra a ditadura e de convocação à luta por direitos trabalhistas, sendo a demanda central naquele momento a que se referia ao "arrocho salarial" imposto pelo regime, que fechara e controlava sindicatos.

Ele já dirigia o Dauphine de seus pais, que devia atingir um máximo de 60-70 km/hora. De fato, o carro já era chamado de Gordini e tinha o apelido de "Leite Glória", pela propaganda "desmancha sem bater". A ação seria à noite, depois das 22 horas.

Partimos, os dois, no carrinho de quatro portas, com cartazes e potes de colas feitas de farinha de trigo temperadas com vidro moído, para dificultar a retirada. Tudo na mala dianteira e no chão de trás do carro. Atravessamos o túnel Rebouças e seguimos pelo Rio Comprido (não havia ainda o elevado Paulo de Frontin), seguindo o itinerário já estabelecido nos levantamentos.

Mas no caminho o pneu furou e o carro patinou. Ficamos gelados: ele não fazia a mínima ideia de como era a troca de pneu de carro! Intelectual, homem de estilo feminino... e eu ainda nem dirigia.

A primeira reação foi esperar a polícia e imaginar que seríamos levados para os porões do Dops. Dez minutos depois, nos acalmamos um pouco, saímos do carro e decidimos que teríamos que pedir ajuda. Em uma avenida escura e deserta.

Um taxista parou e ofereceu-se para trocar o pneu. Perguntou pelo macaco e pelo estepe. Não fazíamos ideia de onde estariam, mas pressentimos que teríamos que abrir a mala. Desajeitadamente, ele correu para abrir e vasculhar o compartimento, enquanto eu distraía o taxista mostrando-lhe o pneu furado.
Não havia macaco! Mas havia estepe. O taxista trouxe o macaco de seu carro e a troca acabou acontecendo. Fizemos a ação da colagem, tremendo da cabeça aos pés.

Foi assim que a oposição clandestina à ditadura perdeu dois de seus militantes. Concluímos que era melhor militarmos de outras formas, em nossas universidades, em nossos empregos, levando materiais para nossos amigos exilados. Ficou atestado que não tínhamos nenhum perfil ou coragem para aquelas ousadias heroicas, que passaram a ser conduzidas por outros mais competentes.

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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