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Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Coisas que aprendi em cima do tapete

Na hora que o movimento deixa de ser uma variável, você passa a observar todo o resto

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Giovana Madalosso

Escrevo para vocês a partir do meu corpo, esse imenso continente que eu julgava conhecer bem. Afinal, nunca deixei de explorá-lo. Fui bailarina até os vinte e poucos anos. Depois segui praticando vários tipos de dança, fazendo ginástica, andando de bike. Carregando filho, transando, trocando lâmpada —quantos músculos não acessamos no dia a dia?

Até que a pandemia chegou e, prestes a ficar doida, resolvi fazer ioga. Nunca imaginei que faria: sempre que via alguém passando com o tapetinho, pensava que não teria calma nem saco para fazer uma "coisa tão zen" —perceba de quantas coisas boas o preconceito é capaz de nos afastar. Ou quase afastar, porque ainda que ressabiada, eu fui.

Mulher pratica ioga nos Jardins Lodhi, na Índia, no Dia Internacional do Ioga - AFP

Meio por acaso, acabei caindo numa vertente da ioga chamada Ashtanga. Uma das características mais marcantes dessa prática é que repetimos, todos os dias, a mesma sequência de posições –em ioguês: ásanas. À medida que vamos firmando cada uma, vamos avançando para outras, de forma que a prática segue sempre a mesma mas cada vez mais longa.

Essa repetição diária dos mesmos exercícios que, a princípio, me pareceu uma coisa chatíssima, se mostrou um negócio fascinante. A partir da hora que o movimento deixa de ser uma variável, passando a ser a referência fixa, você passa a observar todo o resto. E o resto é muito.

Percebo um sutil desequilíbrio para me abaixar quando bebo ou tomo remédio para dormir na noite anterior. Não fecho uma certa posição se exagero um pouco no jantar. Não consigo manter o equilíbrio em outra se, na hora, penso em determinadas pessoas. Uma iogue canadense chegou a descobrir um tumor no cérebro porque não conseguia ficar num ásana como antes.

Mas o melhor foi o que duas posições me ensinaram, e aqui não falo de perseverança, disciplina ou outros itens de fábrica das práticas físicas.

A primeira lição veio do famoso Savasana que, por muitos, nem é considerado um ásana, já que consiste em deitar e descansar ao final da série. Sou capaz de ficar cinco minutos de ponta cabeça, apoiada apenas nos antebraços, mas não sou capaz de ficar o mesmo tempo fazendo nada.

Enquanto meus colegas ficam quinze, até vinte minutos relaxando, alguns debaixo de cobertores, começo a pensar o que vou escrever nas colunas, o que preciso comprar no supermercado, o que vou dar de aniversário para sei lá quem.

Com muito esforço, aguento quatro ou cinco minutos no duro far niente –e só aguento porque minha professora está olhando, do contrário, contaria um, dois três e sairia correndo, exibindo ao mundo meu constrangedor estado psíquico.

A segunda posição é o Supta Kurmasana, em que preciso passar as mãos por baixo das pernas esticadas e fechá-las nas costas. Como meus dedos ainda não conseguem se juntar lá atrás, preciso de ajuda ou de uma toalha que proporcione a emenda. Embora saiba que, invariavelmente, a professora virá, sigo levando a toalha. Quem precisa se garantir é a Giovana que foi mãe solo em uma cidade em que não tinha família nem rede de apoio que lhe estendesse a toalha.

Tenho vontade de me aproximar da Giovana no Savassana e dizer no seu ouvido: "Você já fez tanto, pode descansar um pouquinho". Tenho vontade de me aproximar da Giovana no Supta Kurmassana e dizer: "Calma, você não tá mais sozinha". Mas talvez não seja necessário, meu corpo já está soprando isso, todo dia um pouco, para a minha mente. É aí que se dá o maior trabalho da ioga: na massa que está dentro da cabeça.

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