Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso
Descrição de chapéu Todas alimentação

Confissões de uma viciada em café

Todas as sociedades humanas têm suas substâncias de estimação

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Já tive muitos vícios. Na adolescência, não conseguia atravessar uma tarde de estudos sem um pedaço de chocolate. Na faculdade, precisava de um cigarrinho de artista para relaxar todas as noites. Depois, veio a nicotina, o pior dos vícios, que esculhambou a minha saúde por duas décadas. Passei perto de me viciar em álcool. Em seguida caí na sarjeta daquele refri estimulante, cheio de açúcar ou aspartame que, durante anos, bebi todos os dias.

Nos últimos tempos, achei que estava livre. Fazendo ioga, meditação, toda natureba, assumi que finalmente era uma mulher sem amarras químicas. Eis que viajei para um lugar isolado, onde o homem ainda não semeou seus quiosques. E, ao acordar, descobri que não havia onde tomar café.

Xícara de café expresso com adoçante - Matuiti Mayezo - 29.nov.10/Folhapress

Pensei que o pior seria aguentar a minha sonolência, já que meu cérebro está acostumado a um peteleco com leite todas as manhãs. Mas, mesmo bem desperta, ao longo do dia segui toda querendona, cheirando as portas das poucas casinhas pelas quais passávamos na esperança de que alguém estivesse coando um e me oferecesse uma xícara.

Tal qual Lou Reed na música "I’m waiting for my man", em que ele conta esperar por um traficante com "twenty-six dollars in my hand", eu já separava uma nota de dinheiro, pronta para gratificar quem me salvaria daquela fissura. Mas essa pessoa não apareceu.

Nesse dia e nos seguintes, senti o preço da abstinência: dores fortes de cabeça e uma fadiga chata, que não condizia com meu estado de ânimo pela viagem. Além de uma sensação de estar mais lenta, dispersa, rendendo menos —mas para quê render se estava de férias?

Quase todas as sociedades tiveram, têm e terão as suas substâncias de estimação. E cada uma dessas diz muito sobre uma época ou uma cultura. Não é de hoje que a cafeína está entre nós, vide os famosos cafés parisienses dos séculos dezoito e dezenove, mas é de hoje o modelo "para levar", formatado para o cliente contemporâneo, que não tem tempo nem para sentar e sorver uma mísera xícara, quanto mais contemplar os passantes, jogar conversa fora ou fazer elucubrações, como fizeram tantos felizardos antes de nós.

Como alfineta o personagem de um dos meus romances: "uma droga que patrão dá de graça para empregado não pode ser coisa boa". O personagem não está falando das propriedades positivas do café, apontadas pela ciência naquelas listas de benefícios que mudam a toda hora, mas do combustível que move a Sociedade do Cansaço, aquela tão bem descrita pelo filósofo Byung-Chul Han.

Não estou aqui para demonizar a droga nossa de cada dia, até porque seria muito hipócrita da minha parte: neste exato momento, intercalo a digitação com goles de um capuccino. Como diz a famosa frase: a diferença entre o veneno e o remédio está na dose. Ou na aplicação, eu acrescentaria. Tomar café é uma delícia, mas usá-lo para trabalhar mais do que o corpo aguenta e mascarar o cansaço, como fiz tantas vezes, é uma armadilha. Muitas vezes, insalubre e viciante.

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