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Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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'O Menu' e 'The White Lotus' exprimem clima de apocalipse do capitalismo tardio

Filmes e séries recentes não apontam saídas coletivas, mas lembram que estamos dançando sobre um vulcão

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A velha banda Aerosmith cantava em 1993 "Eat the Rich" (devore os ricos). Pois há hoje filmes e séries que estão nesse clima. A expressão anda definindo uma categoria cinematográfica. Eu gosto também de pôr esses filmes sob a sigla LSC: "late-stage capitalism" (capitalismo de estágio final).

Estágio final é uma tradução bem ambígua: ninguém garante que o capitalismo vá morrer, e o pior está sempre por vir. Mais ainda, o anúncio de seu término não data de hoje. Mas a expressão indica que paira um sentimento geral de apocalipse, uma apreensão surda no fundo da alma coletiva.

Indica também que o capitalismo chegou agora a um estágio em que as contradições do sistema se tornam cada vez mais agudas. Ele criou uma economia global altamente desenvolvida, concentrando grandes quantidades de capital e poder nas mãos de um grupo minúsculo. O resto da humanidade, que luta como pode para sobreviver, é sacrificado em escala muito maior do que antigamente.

A desigualdade crescendo em grandeza planetária, a pressão econômica e social sobre as classes mais baixas, a precarização do trabalho, a desesperada migração dos povos pobres para os países ricos, o lucro astronômico, inconsequente em relação à destruição do planeta, a desregulamentação do mercado financeiro que permite manipulações opressoras significam que as disparidades e problemas do sistema estão sendo amplificados de modo paroxístico.

No cinema, o tema do conflito entre ricos e pobres não é de hoje: basta lembrar "Metrópolis", de Fritz Lang (1927). Seria um joguinho fazer uma lista de filmes concebidos nesse espírito; eles são muitos na história do cinema. Cito dois mais recentes, do mesmo diretor, Neill Blomkamp, meus favoritos, "Distrito 9" (2009) e "Elysium" (2013).

Nos filmes atuais com esse tema, o foco muitas vezes está na relação de crueldade pessoal, concentrada em indivíduos que exploram a violência e diversões brutais circunscritas a locais limitados. "Bacurau" (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um deles. Essa abordagem tem um precursor mais longínquo no extraordinário "Zaroff, o Caçador de Vidas" (1932), dirigido por Ernest B. Schoedsack e Irving Pichel.

Um tema semelhante, com história bem mais complicada, foi retomado em "Infinity Pool" (2023), de Brandon Cronenberg, ainda não lançado no Brasil. Super-ricos em um resort fechado e protegido dentro de uma vaga ilha oceânica, paupérrima e corrupta: as reviravoltas não cessam, o filme é vertiginoso de crueldades que proclamam a desumanização dos arquimilionários e que se infiltram nas almas sob forma de perversão.

É o universo também da série "The White Lotus", criada e dirigida por Mike White, com duas temporadas já lançadas (2021-2022). Em "White Lotus", o princípio literal da caçada de seres humanos desaparece para sublinhar uma relação perversa entre hóspedes e funcionários —ou agregados a funcionários— em um hotel de luxo.

O filme "Parasita" (2019), de Bong Joon Ho, expôs o ódio de classe entre empregados e patrões, e "Triângulo da Tristeza" (2022) de Ruben Östlund, levou a uma revanche dos funcionários sobre os ricos, mas apenas em uma situação localizada em um lugar minúsculo e prestes a fracassar assim que haja um retorno ao mundo em seu funcionamento normal.

A vingança dos servidores se transforma em franco pesadelo de classe, explícito e demonstrativo, no filme "O Menu" (2022), de Mark Mylod, que está no streaming Star+. Sobre esses exemplos recentes, em que empregados e patrões entram em conflito, paira a sombra ilustre de "O Anjo Exterminador" (1962), de Luis Buñuel.

Os filmes do fluxo "eat the rich" não se concentram na velha divisão entre burguesia e proletariado, mas sublinham a distância abissal que existe entre os mais pobres e os multimilionários do capitalismo tardio.

Diferente do século 19, em que havia um enfrentamento direto, o operário, hoje, nem sequer sabe o nome de seu patrão, aqueles senhores das imensas multinacionais. Os riquíssimos de agora não chegam perto, nunca, da pobreza, a não ser no contato que têm com seus criados. Daí, esses filmes e séries se tornarem um laboratório humano em que os conflitos e as relações equívocas se fazem entre serviçais e servidos.

No filme "A Caçada" (2020, Netflix), de Craig Zobel, que também se insere na derivação de Zaroff e no tema de "Bacurau", um milionário, riquíssimo, viajando em jato privado para uma caçada humana, se diverte em humilhar a aeromoça, obrigada a descrever com detalhes o caviar a ser servido. Basta uma pergunta do passageiro, "Você já comeu caviar?", para que a resposta, "não", seja excludente de um ponto de vista social e humano: quem não come caviar não é nada, quem não é multimilionário faz parte da categoria que pode virar caça. Torna-se presa.

No quinto episódio da temporada quatro da série "Você" (Netflix), "The Fox and the Hound" (a raposa e o cão), a dona da mansão humilha seus criados, fazendo-os cumprirem ordens degradantes. As amostras dessa dinâmica de poder e opressão entre empregadores e empregados poderiam se multiplicar.

Um exemplo precursor dos filmes atuais criados nesse espírito é a comédia anarcoantropofágica de 1987 dirigida por Peter Richardson e intitulada exatamente "Eat the Rich" ("Comendo os Ricos"). Ela inclui uma forte ironia política e um personagem que parece combinar Bolsonaro, Trump e Berlusconi ao mesmo tempo. A expressão "eat the rich" contém em si uma pulsão de ódio visceral, que anseia por uma catarse canibalesca.

Resta outro tema que completa o quadro do estágio terminal do capitalismo: o apocalipse. Acabou de estrear no Brasil "Batem à Porta" (2023), de M. Night Shyamalan, um delírio místico milenarista sobre o fim dos tempos e sobre o sacrifício. No caso, o sacrifício do amor mais puro, como se sua condição da existência fosse o seu banimento: sobreviveremos se matarmos o ser amado.

"Sinais evidentes anunciam o próximo fim do mundo; as ruínas se manifestam" é uma fórmula recorrente em documentos do século 9º. Ela foi analisada pelo historiador da arte francês Henri Focillon (1881-1943) em seu impressionante livro "L’an Mil" (que a Editora da Unesp deve publicar em português neste ano).

Focillon determina: "Cada vez que a humanidade é abalada em suas profundidades por um cataclismo político, militar ou moral de uma amplidão inusitada, ela pensa no fim dos tempos, ela evoca o Apocalipse". A perspectiva apocalíptica está presente em todos os filmes lembrados aqui, porque a humanidade sente-se apocalíptica.

Esses filmes e séries não abrem caminho para saída coletiva alguma. São constatações exprimindo, sob forma de arte, um mal-estar que não se resolve, porque o gênero humano parece incapaz de pôr em prática soluções para tanto.

Porém, esses filmes e séries denunciam. Criam, ou aumentam em nós, a consciência da crise, a inquietação, lembram a urgência da mudança e de nossas responsabilidades. Atualizam a antiga frase "dançar sobre o vulcão".

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