Siga a folha

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Descrição de chapéu guerra israel-hamas

Criatura inventada por Kafka simboliza drama judeu atual

Identidade judaica é instrumentalizada tanto para autorizar opiniões de autores quanto para invalidar suas visões

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Em célebre carta a Max Brod, Kafka menciona alguns dos obstáculos que, no início do século 20, um jovem escritor judeu enfrentava ao tentar expressar as suas ideias em alemão ao mesmo tempo em que também vislumbrava manter qualquer vínculo, por mais tênue que fosse, com a sua própria identidade judaica.

Entre os obstáculos elencados por Kafka temos as impossibilidades de não escrever, de escrever em alemão, de escrever de outro modo, bem como a de escrever como um todo.

O escritor Franz Kafka (1883-1924) - Reprodução

Desde o começo do atual conflito no Oriente Médio que essa carta não me sai da cabeça. Quero escrever sobre o que está acontecendo, preciso escrever e ao mesmo tempo não consigo.

Hesito todas as vezes em que tento colocar no papel o que eu penso sobre a guerra, bem como sobre os riscos que o discurso, as atitudes e as alianças equivocadas do governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu representam para o Estado de Israel; onde morei durante quase seis anos e acumulei as minhas primeiras experiências de vida adulta.

Calculo como e para quem devo escrever sobre o conflito e, se, ao fazê-lo, a minha opinião corre algum risco de ser instrumentalizada, seja por quem tenta argumentar que não tenho legitimidade para tratar do assunto, seja por quem acredita compartilhar do meu ponto de vista; mas, em realidade, pensa o oposto de mim e procura se aproveitar de todo e qualquer questionamento sobre o Oriente Médio para se posicionar abertamente, não somente contra a política do governo israelense, mas, sobretudo, contra o meu bem-estar enquanto judia e a segurança dos meus correligionários.

Viver calculando como e para quem podemos ou não falar sobre algo que consideramos tão importante ou até mesmo vital é cansativo e, aos poucos, acaba alimentando ainda mais a nossa própria sensação de desamparo.

Ainda naquela mesma carta para Max Brod, Kafka ilustra tal desamparo ao comparar o jovem escritor judeu da sua época a uma criatura imaginária cujas pernas traseiras estariam atadas à experiência do passado e às tradições familiares; enquanto as pernas dianteiras se agitam frenética e desordenadamente sem jamais encontrarem onde pisar com segurança, como se o chão não existisse ou, pior ainda, como se ele pudesse a qualquer momento desaparecer sob os seus pés.

Quando a guerra começou, alguns conhecidos me procuraram para conversar sobre o assunto. Afinal, sou judia e morei em Israel, portanto, devo ter alguma experiência do conflito.

A ironia, no entanto, é que, ao mesmo tempo em que eles se mostravam interessados na minha opinião —como se qualquer coisa que eu dissesse pudesse, enfim, esclarecer algo de importante, permitindo-os, quem sabe, acesso a uma realidade que pouca gente conhece de perto — essas mesmas pessoas também acabavam desautorizando as minhas opiniões pelo mesmo motivo que os levaram a me procurar de primeiro momento.

Fiquei, portanto, como a criatura imaginada por Kafka, quase que absolutamente sem chão, presa somente a uma identidade que, embora fosse realmente minha, estava agora sendo lançada contra mim de modo a invalidar a minha expressão enquanto indivíduo.

Não gosto de me perceber nesta situação e costumo me perguntar se autores pertencentes a outras minorias também passam pelo mesmo problema. Acredito que sim, mas como não posso me arvorar de falar por todos, nem tenho essa pretensão, permitam-me ilustrar o meu dilema a partir de outro exemplo da experiência judaica do século 20.

Na década de 1960, um grande entusiasta da obra de Kafka, o historiador e estudioso do misticismo judaico, Gershom Scholem (1897-1982), recebeu um convite para participar de uma coletânea de artigos em homenagem à poeta Margarete Susman (1872-1966), na qual o organizador tinha por objetivo festejar a vitalidade do diálogo entre judeus e alemães.

Em seu texto, no entanto, Scholem argumenta que esse diálogo não passava de uma ilusão e, que, em verdade, ele nunca existiu. Segundo Scholem, uma conversa pressupõe a existência de duas partes dispostas a escutar o que a outra tem a dizer. Os alemães, ainda segundo ele, nunca estiveram dispostos a escutar os judeus. Consequentemente, embora os judeus se esforçassem de toda e qualquer maneira para serem escutados pelos alemães, no fim de contas, eles sempre percebiam estar sozinhos, condenados a simplesmente debaterem entre si.

Tenho a impressão de que os problemas apontados por Kafka e as reflexões de Scholem permanecem atuais, quando observo o que acontece hoje, com a onda de antissemitismo que a guerra no Oriente Médio inspira no Brasil e em outras partes do mundo, persistindo, infelizmente, em obstaculizar toda e qualquer tentativa de diálogo.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas