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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Simone de Beauvoir e Camus têm atos de glória e covardia expostos em livro

Nova obra de François Dosse publicada no Brasil mapeia intelectuais franceses em tempos de heroísmo e de desastre

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Sartre, Simone de Beauvoir, Foucault, tudo bem. Difícil não ter ouvido falar deles em algum lugar. Mas o número dos intelectuais franceses que tiveram importância durante o século 20 não acaba nunca. Roger Nimier? Kostas Papaïoannou? Colette Audry? Francis Jeanson? Todos puseram sal e pimenta na fervura ideológica daqueles anos.

Sai no Brasil, pela editora Estação Liberdade, o primeiro volume do livro de François Dosse sobre o tema. Em quase 600 páginas, o historiador cobre o período que vai de 1944 a 1968, deixando os acontecimentos de Maio de 68 e tudo o que veio depois, até a queda do Muro de Berlim, para o segundo volume.

Como havia feito na sua “História do Estruturalismo” (ed. Unesp), Dosse se dedica a comprimir o máximo de fatos e nomes numa crônica que, sem ser tremendamente interpretativa, é utilíssima.

Antes de tudo, o interesse do livro está em conhecer a variedade de compromissos, covardias e atos de coragem que se abrem a cada um dos participantes do tumulto.

A história dos intelectuais durante a ocupação nazista é a mais empolgante e conhecida; a literatura sobre isso é extensa, e François Dosse tem de passar mais ou menos rápido por esse capítulo.

A década seguinte, dos anos 1950, mostra o máximo vigor do estalinismo no Partido Comunista Francês e a impressionante máquina de injúrias a serviço da causa soviética.

Eram os tempos do “caso Lyssenko”, envolvendo as pseudodescobertas do estalinismo contra as teorias da genética, forçaria alguns cientistas importantes, como Marcel Prenant, a engolir sapos em nome da pátria socialista. Terminou expulso do comitê central do mesmo jeito.

Foi também o momento heroico de Simone de Beauvoir, cujo clássico feminista “O Segundo Sexo” foi proibido na União Soviética e em Portugal. Para quem se assusta com as baixarias atuais na internet, cabe lembrar que o correio, naquela época, não fazia por menos.

Publicada em 19 de outubro de 2021 - André Stefanini

Mesmo o prêmio Nobel François Mauriac, romancista católico que em geral se saía muito bem na defesa das causas progressistas, perdeu a compostura com Simone de Beauvoir. Mandou uma carta para um redator da revista Temps Modernes, que ela dirigia com Sartre, comentando um capítulo do livro: “agora já sei tudo sobre a vagina da sua patroa”.

A sordidez contrasta com os atos de coragem —física, até, no caso dos muitos que denunciaram as violências francesas na Guerra da Argélia. Militares de boininha tramavam o golpe —enquanto livros
contra a tortura, como “La Question”, de Henri Alleg, eram proibidos pelo governo.

François Dosse talvez tenha resumido demais essa parte —em que a defesa dos atentados a bomba contra o colonialismo francês não era muito problematizada pelos intelectuais (exceção feita, como se sabe, a Camus).

Mas é muita coisa para um livro só. E o projeto de François Dosse encontra outras dificuldades, não apenas quantitativas.

Como ele próprio aponta no prefácio, o período que se seguiu à vitória contra o nazismo ainda estava marcado pelo senso de que se viviam decisões dotadas de significado histórico universal. Era ainda o clima de 1789, 1848, 1917.

Duas lutas novas, capazes de transformar profundamente a segunda metade do século, começaram a surgir: a do feminismo e a do antirracismo. Só que, naquele ambiente masculino e branco, os intelectuais mais conhecidos tiveram um papel auxiliar; os debates se fragmentaram.

Outro ponto significativo é que, até 1960 mais ou menos, as grandes estrelas do debate tinham escrito romances ou peças de teatro: Sartre, Camus, Malraux, Mauriac. Depois disso, os intelectuais mais importantes vieram do campo das ciências humanas: Lévi-Strauss, Foucault, Barthes, Bourdieu, Althusser. Era tudo brilhantíssimo, e muitas vezes maravilhosamente bem escrito, mas não era a mesma coisa.

O segundo volume verá crises ainda maiores —com o “senso da história” passando para as mãos da direita liberal, e as leis do mercado e da mídia substituindo o intelectual público pelo intelectual “pop”, pelo menos na França.

“A Saga dos Intelectuais Franceses” sofre um pouco por não se concentrar em algumas figuras-chave, de quem valeria expor todo o perfil de uma vez só. Mas seria outro livro (o de Michel Winock, “O Século dos Intelectuais”, aproxima-se mais disso).

Como seu próprio objeto, o livro de Dosse se estilhaça em dezenas de fragmentos. Mas cada um deles brilha por si.

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