Repressão do regime soviético transformou humor em crime

Contar piadas políticas no governo Stálin era considerado ato de traição à pátria, punível com prisões em campos de trabalho forçados

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Jonathan Waterlow

[resumo] No auge da paranoia e do brutal controle stalinistas, contar piadas políticas na União Soviética era considerado ato de traição à pátria, punível com prisões em campos de trabalho forçados, mas tamanha repressão teve como resultado intensificar a ânsia dos soviéticos em ridicularizar o regime.

Stalinismo. A palavra traz à mente inúmeras associações —e “engraçado” geralmente não é uma delas. Hoje, o chamado “palavrão que começa com S” é sinônimo de um controle estatal brutal e abrangente, que não deixava espaço para o riso ou qualquer forma de dissensão.

Apesar disso, incontáveis diários, livros de memórias e até mesmo os arquivos da União Soviética revelam que as pessoas continuaram a contar piadas sobre a vida frequentemente terrível que eram forçadas a viver à sombra do gulag [sistema de campos de trabalhos forçados soviéticos].

Nos anos 1980, as piadas políticas soviéticas já eram apreciadas tão amplamente que até o presidente americano Ronald Reagan gostava de colecioná-las e recontá-las. Todavia, 50 anos antes disso, sob o regime aterrador e paranoico de Stálin, por que o soviético comum compartilhava piadas ridicularizando seus líderes e o sistema, quando havia o risco de o NKVD (a espionagem do estado) arrombar a porta de seu apartamento e arrancá-lo de sua família, possivelmente para nunca mais devolver?

Sabemos hoje que não apenas reunidos em volta da mesa da cozinha, mas até mesmo nos bondes, cercados por desconhecidos, e, possivelmente o gesto mais ousado, no chão de fábricas, onde as pessoas eram constantemente exortadas a demonstrar sua devoção absoluta à causa soviética, as pessoas contavam piadas que ridicularizavam o regime e o próprio Stálin.

Um exemplo típico foi Boris Orman, que trabalhava numa padaria. Em meados de 1937, no momento em que o turbilhão de expurgos de Stálin se espalhava pelo país, Orman compartilhou a seguinte piada com um colega, enquanto tomavam chá na cantina da padaria:

“Stálin estava nadando, mas começou a se afogar. Um camponês que passava ao lado pulou na água e o arrastou até a margem, salvando-o. Stálin perguntou ao camponês o que ele queria como recompensa. Percebendo quem acabara de salvar, o camponês gritou: ‘Nada, nada! Mas, por favor, não conte a ninguém que eu o salvei!’”.

Uma piada desse tipo podia facilmente levar a uma condenação a dez anos em um campo de trabalhos forçados — foi o que aconteceu com Orman —, onde os prisioneiros frequentemente morriam por maus-tratos.

Apoiador do partido comunista russo em Moscou carrega retrato de Stálin durante comemorações de 67 anos de morte do líder soviético
Apoiador do partido comunista russo em Moscou carrega retrato de Stálin durante comemorações de 67 anos de morte do líder soviético - 5.mar.2020 - Alexander Nemenov/AFP

Paradoxalmente, a própria repressão do regime apenas intensificava a ânsia de contar piadas, o que ajudava a aliviar a tensão e lidar com realidades cruéis que não podiam ser modificadas. Mesmo nos tempos mais desesperadores, “as piadas sempre nos salvaram”, como recordaria mais tarde o líder soviético Mikhail Gorbachev.

No entanto, apesar dessas reações draconianas, a relação do regime soviético com o humor era mais complexa do que tendemos a supor, baseando-nos nas narrativas icônicas que interiorizamos a partir da leitura do romance “1984” (1949), de George Orwell, e do livro de memórias “Arquipélago Gulag” (1973), de Aleksandr Soljenítsyn.

Os bolcheviques desconfiavam do humor político; eles o haviam usado como arma afiada em sua luta revolucionária para enfraquecer o regime czarista antes de sua dramática tomada do poder em 1917. Depois de consolidar sua posição, a liderança soviética tomou a decisão cautelosa de que, a partir daquele momento, o humor só deveria ser usado para legitimar o novo regime.

Assim, revistas satíricas como a Krokodil publicavam ataques mordazes contra os inimigos internos e externos da União Soviética. O humor só era tido como útil e aceitável quando promovia as metas da revolução. Como resumiu um delegado ao Congresso de Escritores Soviéticos em 1934, “a tarefa que cabe ao humor soviético é matar seus inimigos de rir e corrigir pelo riso” aqueles que eram leais ao regime.

Mesmo assim, embora muitos soviéticos devessem encontrar algum alívio cômico nessas publicações sancionadas pelo Estado, o humor nunca pôde ser inteiramente dirigido. Na companhia de amigos, e possivelmente com a ajuda de um pouco de vodca, muitas vezes era quase impossível resistir à tentação de ir um pouco além e ridicularizar as metas de produção estratosféricas, a corrupção onipresente e as contradições enormes entre as promessas cintilantes do regime e a realidade cinzenta e muitas vezes desesperadora encarada diariamente pelas pessoas comuns.

Tome-se, por exemplo, o humor negro de Mikhail Fedotov, um agente de aquisições da região de Voronezh, que espalhou uma anedota comum ironizando os verdadeiros custos da campanha intransigente de industrialização lançada por Stálin:

“Um camponês visita o líder bolchevique Kalinin em Moscou para perguntar por que o ritmo de modernização é tão implacável. Kalinin o leva até a janela e aponta para um bonde que passa ao lado: ‘Você vê, temos uma dúzia de bondes hoje, mas daqui a cinco anos teremos centenas.’ O camponês volta para sua fazenda coletiva, onde seus camaradas o cercam para perguntar o que ele descobriu. Olhando em volta em busca de inspiração, ele aponta para o cemitério ao lado e diz: ‘Vocês estão vendo essa dúzia de sepulturas? Daqui a cinco anos, serão milhares!’”.

Uma piada desse tipo podia aliviar os medos, tornando-os, por um breve momento, risíveis, e ajudar as pessoas a dividir com seus companheiros o peso enorme de uma vida vivida “pelas graças do NKVD” (outro gracejo da época).

No entanto, ao mesmo tempo em que ajudava as pessoas a seguir vivendo, compartilhar anedotas tornou-se cada vez mais perigoso, à medida que o regime soviético foi ficando crescentemente paranoico ao longo dos anos 1930. Com a ameaça de guerra assomando na Europa, o medo de conspirações e sabotagem industrial corria solto na URSS.

Por conta disso, contar piadas que criticassem a ordem política soviética rapidamente passou a ser visto como traição à pátria. O humor político seria um vírus tóxico que tinha o poder de disseminar veneno pelas artérias do país.

Segundo diretiva emitida em março de 1935, contar piadas políticas era um ato tão perigoso quanto vazar segredos de Estado — tão perigoso e contagioso que as ditas piadas não podiam ser relatadas nem nos documentos dos tribunais. Apenas os funcionários mais leais ao governo eram autorizados a conhecer o teor daqueles crimes de pensamento. Os contadores de piadas às vezes eram processados sem que suas palavras jamais fossem incluídas nos registros oficiais dos julgamentos.

Os cidadãos comuns tinham pouca chance de acompanhar a paranoia do regime. Em 1932, quando contar troças políticas ainda era algo mais picante que perigoso, um operário ferroviário como Pavel Gadalov pôde contar uma piadinha banal, dizendo que fascismo e comunismo eram farinha do mesmo saco, sem enfrentar repercussões sérias. Cinco anos mais tarde, a mesma brincadeira foi reinterpretada como indício de um inimigo oculto. Gadalov foi sentenciado a sete anos de detenção em um campo de trabalhos forçados.

Esse estilo de justiça retroativa é algo que podemos reconhecer hoje, quando o desejo obstinado de converter o mundo em um lugar melhor é capaz de fazer de um tuíte impensado, postado dez anos atrás, uma sentença de morte profissional e social. Isso está muito longe de ser comparável aos horrores do gulag, é claro, mas o princípio subjacente é estranhamente semelhante.

Contudo, como muitos de nós fazemos hoje, os líderes soviéticos se equivocaram em relação ao que é o humor e o que ele realmente faz pelas pessoas. Contar uma piada sobre algo não é o mesmo que condenar ou endossar essa coisa. Mais frequentemente, pode simplesmente ajudar as pessoas a chamar a atenção para situações difíceis ou assustadoras; pode ainda ajudá-las a enfrentar essas situações sem se sentirem estúpidas, impotentes ou isoladas.

Na verdade, o regime soviético não entendeu que o humor, ao propiciar alívio temporário das pressões do cotidiano, dava condições aos soviéticos de fazer exatamente o que o regime queria deles: ficar calmos e continuar trabalhando.

Quando contamos piadas, muitas vezes testamos opiniões e ideias sobre as quais estamos em dúvida. As piadas são exploratórias, contadas no espírito de brincadeira, mesmo que ultrapassem os limites do que é oficialmente aceitável. Quase todos os contadores de piadas presos nos anos 1930 pareceram genuinamente perplexos por terem sido tachados de inimigos do Estado devido a seus “crimes de humor”.

Em muitos casos, as pessoas compartilhavam piadas criticando circunstâncias estressantes ou incompreensíveis, fazendo-o apenas para lembrar a si mesmas que eram capazes de enxergar mais além do véu da propaganda política, vendo a realidade dura que estava por trás.

Em um mundo de conformidade sufocante e fake news intermináveis, mesmo farpas satíricas simples podiam servir como uma declaração profundamente pessoal: “conto piadas, logo existo”.

Rimos nos momentos mais sombrios, não porque isso possa mudar nossa situação, mas porque rir sempre pode modificar como nos sentimos sobre ela. Piadas nunca têm apenas um significado, e a história oculta do humor político sob Stálin é muito mais nuançada do que uma simples disputa entre repressão e resistência.


Jonathan Waterlow, escritor e criador do podcast Voices in the Dark, é autor de “It’s Only a Joke, Comrade! Humour, Trust and Everyday Life under Stalin” (2018).

Texto originalmente publicado no site Aeon; tradução de Clara Allain.

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