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Descrição de chapéu Coronavírus

Escarcéu político por causa de vacina é tradição centenária no Brasil

Reação de Bolsonaro à obrigatoriedade da vacinação e desconfiança sobre imunização não são inéditas

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São Carlos (SP)

Políticos armando um escarcéu por causa de projetos de vacinação podem ser considerados uma tradição centenária no Brasil e no mundo. “Não tem nome, na categoria dos crimes de poder, a violência, a tirania de me envenenar com a introdução, no meu sangue, de um vírus sobre cuja influência existem os mais fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte”, vociferava o jurista e ex-ministro da Fazenda Ruy Barbosa (1849-1923), ao se opor à obrigatoriedade da vacina contra a varíola em 1904.

A retórica do escritor baiano não é muito diferente das reações de líderes políticos e religiosos à vacinação generalizada e/ou compulsória em diversos lugares do mundo desde o século 18, quando a imunização contra doenças infecciosas começou a ser dominada e colocada em prática de modo mais amplo.

Bonde tombado na praça da República, no Rio de Janeiro, durante a Revolta da Vacina - Divulgação

Em parte, a resistência pode ser explicada pelo fato de que, durante muito tempo, os riscos associados ao procedimento eram bem maiores do que o considerado aceitável hoje. Também havia pouca compreensão sobre como as imunizações funcionavam, e as técnicas rudimentares podiam levar à transmissão de outras doenças durante o processo. Por fim, as autoridades às vezes usavam a vacinação como parte de políticas públicas higienistas, que discriminavam populações carentes ou minorias.

Intervenções que acabariam dando origem aos métodos modernos de vacinação começaram a se espalhar pela Europa e pela América do Norte por volta de 1720, quando a técnica conhecida como variolação, praticada tradicionalmente em locais como a China ou a Índia, passou a ser empregada por médicos ocidentais.

O método consistia em obter material de pústulas ou fluidos de pessoas com varíola e inseri-los em cortes superficiais na pele de quem desejava ser imunizado. Sabia-se que, dessa maneira, aumentavam as chances de que a pessoa desenvolvesse um caso leve da doença e ficasse imune pelo resto da vida.

Testes feitos pelo cirurgião norte-americano Zabdiel Boylston mostraram que a variolação era mais segura que a doença normal: de 300 pessoas que ele tratou, apenas seis morreram (1 em cada 50), enquanto, na mesma época, uma epidemia de varíola matou mil entre 6.000 infectados (1 em cada 6). O sucesso valeu a Boylston a eleição como membro da Royal Society, ainda hoje a principal associação científica britânica, em 1726.

Apesar do êxito, líderes religiosos como o teólogo britânico Edmund Massey se opuseram à prática – Massey chegou a escrever o panfleto “A Prática Perigosa e Pecaminosa da Inoculação”, dizendo que o procedimento era uma “operação diabólica” que impedia que Deus punisse os pecadores com doenças.

A vacinação propriamente dita começou com o trabalho do médico britânico Edward Jenner (1749-1823). “Ele notou que as mulheres que faziam a ordenha de vacas tinham pústulas, mas não pareciam contrair varíola. Com material extraído de uma lesão de varíola bovina de uma das ordenhadeiras, ele inoculou um menino de oito anos. O menino sobreviveu”, escreve o jornalista americano Matt Richtel em seu livro “Imune”, uma história dos estudos sobre o sistema de defesa do organismo.

Caricaturas da época mostravam pacientes desenvolvendo pequenas cabeças de vaca em seus narizes e bochechas, e alguns críticos suspeitavam que a prática poderia levar à transmissão de moléstias como sífilis e tuberculose (análises modernas mostram que o risco de fato existia, devido à falta de métodos antissépticos, embora fosse baixo). Mas a prática foi um avanço tremendo para a época, e o governo britânico, nos anos 1840 e 1850, aprovou leis que primeiro ofereciam vacinação gratuita para bebês e, mais tarde, tornaram-na obrigatória, estabelecendo multas e até prisão para os pais que não seguissem a legislação.

Os responsáveis por fiscalizar essas medidas, porém, eram membros dos governos municipais do Reino Unido, e muitos deles, pressionados pela população, puseram-se a fazer vista grossa aos que não vacinavam seus filhos. Debates no Parlamento e na imprensa também davam voz aos contrários à obrigatoriedade, que ganharam apoio de gente como o escritor George Bernard Shaw e o biólogo Alfred Russel Wallace (descobridor, ao lado de Darwin, da teoria da seleção natural). Por fim, no começo do século 20, o governo britânico passou a aceitar declarações de “objeção de consciência” dos que não queriam vacinar seus filhos.

No Brasil, embora a vacinação contra varíola fosse praticada em alguma medida desde meados do século 19, o que deflagrou a oposição virulenta de Ruy Barbosa e outros políticos de peso da República Velha foi a aprovação de uma lei em favor da imunização compulsória durante o mandato do presidente Rodrigues Alves, que começou em 1902.

O político e diplomata Ruy Barbosa - Reprodução

Alves e seu aliado Francisco Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro (então capital do país), impuseram um programa radical de reforma urbana que desapropriou e demoliu sumariamente milhares de casas ocupadas pela população pobre da cidade. O objetivo era melhorar o tráfego entre as instalações portuárias e o resto da metrópole e diminuir a propagação de doenças infecciosas, como a febre amarela.

O esforço sanitarista, conduzido pelo jovem médico Oswaldo Cruz, deu resultados, mas violou sistematicamente os direitos dos cariocas mais humildes. Com a aprovação da lei da vacinação obrigatória contra a varíola, que permitia às equipes do governo invadir casas e fazer inoculações à força, políticos de oposição começaram a insuflar a população, já descontente, contra a iniciativa.

O sanitarista Oswaldo Cruz - Reprodução

Em parte, o machismo impulsionava a desconfiança. “Absurdo maior seria pensar que, enquanto os maridos trabalhavam, suas esposas e filhas eram obrigadas a levantar as roupas para os agentes sanitários lhes vacinarem os braços”, diz o infectologista Stefan Cunha Ujvari em seu livro “História das Epidemias”. “Embora não faltasse lógica à campanha, ela deveria ter sido mais bem comunicada à população”, resume o jornalista Rodrigo Vizeu no livro “Os Presidentes”.

Oficiais do Exército acharam que seria possível usar a agitação para dar um golpe e instalar uma ditadura. Bairros populares do Rio passaram dias em polvorosa, com depredações da iluminação e do transporte público e combates contra a polícia. O governo de Rodrigues Alves sobreviveu ao caos, mas a Revolta da Vacina, como ficou conhecida, acabou levando à suspensão da vacina obrigatória.

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