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Goleiro montou time de padeiros que venceu nazistas na 2ª Guerra

Equipe formada por ex-atletas ucranianos dominou invasores do país e virou lenda

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São Paulo

O ano era 1942 quando Josef Ivanovic Kordic, sentado em um café de Kiev, avistou uma pessoa bem magra, mal vestida, com a barba por fazer e que mancava ao andar.

A cena poderia ser considerada comum em uma Ucrânia invadida pelo exército nazista, onde parte do povo estava entregue à própria sorte, mas o que realmente chamou atenção é que aquela figura convalescida era Nikolai Trusevich, um famoso goleiro soviético.

Jogador do Dínamo de Kiev, Trusevich havia se alistado no exército soviético em 23 de junho de 1941, um dia após a invasão nazista na região durante a 2ª Guerra Mundial. No conflito, foi capturado e passou por dois campos de concentração antes de ser liberado com outros prisioneiros para viver pelas ruas da capital da Ucrânia.

O goleiro é um dos personagens do “Jogo da Morte”, o quinto e último episódio da série em podcast Bola de Chumbo, publicado pela Folha nesta sexta-feira (20).

Kordic, o homem que o encontrou, era um grande fã seu e do Dínamo. O esporte, principalmente o futebol, era uma das poucas coisas de Kiev que causavam admiração a este tcheco da Morávia. De sangue germânico, falava alemão e era bem relacionado com os nazistas, tanto que foi alçado à administração da Padaria Nº 3, responsável por fornecer alimento ao exército invasor.

O administrador resgatou Trusevich das ruas e o colocou para trabalhar na fábrica de pães, junto a outros esportistas locais.

No livro “Futebol e Guerra”, o autor escocês Andy Dougan traça um paralelo entre Kordic e Oscar Schindler, o empresário alemão que salvou mais de mil judeus da morte durante o Holocausto.

“Seria fácil imaginar Josef Kordic como uma figura parecida com Oscar Schindler, empenhado em esconder esses esportistas –homens e mulheres– do escrutínio dos alemães. Na verdade, suas razões parecem ter sido muito menos altruístas. Kordic era um aficionado do esporte e, como para a maioria dos entusiastas, a ideia de conviver com seus heróis o mobilizou mais do que qualquer coisa”, escreveu Dougan.

O funcionamento da padaria agradava aos alemães, mas o responsável pelo local achava que, para seguir com a boa produtividade da fábrica, não bastava colocar seus homens para trabalhar duro. Era preciso dar a eles uma distração, um lazer. E foi aí que o futebol veio à mente.

Kordic lembrou-se de outros ex-jogadores do Dínamo que poderiam estar vivendo em Kiev e convenceu Trusevich a buscá-los para montar um time.

Com isso, o ex-goleiro saiu à caça dos ex-colegas de clube. O primeiro que encontrou foi Makar Goncharenko, artilheiro da liga soviética em 1938. O atacante havia guardado seu uniforme e suas chuteiras porque acreditava que, mesmo sob a invasão nazista, voltaria a jogar futebol um dia.

Trusevich encontrou apenas Goncharenko e outros seis ex-jogadores do Dínamo. Para completar o time, recrutou outros três ex-atletas que atuavam pelo rival do Dínamo, o Lokomotiv de Kiev.

Apresentados a Kordic, todos começaram a trabalhar na padaria e a treinar para uma espécie de liga amadora, que teve a permissão dos nazistas para ser realizada graças à influência de fascistas ucranianos.

“O esporte era uma maneira de mostrar [aos ucranianos] que a vida continuaria sob os nazistas como antes; era uma ferramenta de propaganda muito poderosa”, conta à Folha o autor Andy Dougan, em entrevista por email.

Além do retorno da “normalidade” cotidiana para o povo, o futebol, junto ao trabalho na padaria, era uma forma de os ex-jogadores terem condições de vida menos precárias. Assim surgiu o FC Start, time que entraria para a história e se tornaria uma lenda.

Mesmo sem o físico da época em que defendiam seus clubes, os jogadores do FC Start passaram com facilidade por cima dos times adversários, formados por outros trabalhadores da cidade ocupada e por nazistas. Eles ganharam os sete primeiros jogos que disputaram, todos por goleada.

O desempenho chamou a atenção de militares de alta patente, presentes nas arquibancadas do estádio Zenit, local das partidas. Eles não faziam ideia de que o time era formado por ex-jogadores praticamente desnutridos. Além disso, começava a incomodar a maneira como o povo ucraniano vibrava com a humilhação de seus algozes em campo.

Os nazistas então convocaram o Flakelf, uma equipe formada por militares da Lutwaffe, a força aérea alemã. Eles eram considerados a elite das Forças Armadas.

Porém, nem mesmo eles foram capazes de vencer o FC Start. No jogo de 6 de agosto de 1942, vitória dos padeiros por 5 a 1. Três dias depois, as equipes voltaram a se enfrentar em uma revanche pedida pelos nazistas.

Foto que supostamente mostra os jogadores alemães e ucranianos juntos, cuja origem não tem data - Joseph Sywenkyj/The New Yotk Times

No vestiário do estádio Zenit, antes do começo da partida, os jogadores do Start receberam a visita de oficiais da SS, a tropa de elite nazista. Eles ordenaram que os jogadores fizessem a saudação nazista antes de a bola rolar.

Mas em campo, os jogadores do FC Start ignoraram as ordens e foram para o intervalo vencendo os alemães por 3 a 1. Mais uma vez, então, os jogadores ucranianos receberam a visita no vestiário. O recado foi mais claro e direto. A equipe não poderia vencer aquele jogo, sob hipótese alguma. 

A pressão psicológica foi ignorada pelos ucranianos. No segundo tempo, cada equipe marcou dois gols e o FC Start venceu a Lutwaffe por 5 a 3.

A partir desse episódio criou-se o mito de que todos os jogadores haviam sido fuzilados ainda nos vestiários por desobedecerem as ordens dos nazistas.

Essa versão foi contada ao longo dos anos como forma de resistência do povo ucraniano ante o invasor, motivada por aqueles jogadores. Rendeu livros e inspirou filmes, como “Fuga para a Vitória” (1981), com Sylvester Stallone, Michael Caine e Pelé.

No entanto, o relato considerado mais fiel aos acontecimentos está em “Futebol e Guerra”, obra de Andy Dougan.

“Trusevich, Klimenko e Kuzmenko foram executados pelos nazistas no campo de concentração de Siretz, aproximadamente seis meses depois do jogo. Nikolai Korotkykh, que foi exposto como um agente do NKVD, o Ministério do Interior soviético, foi torturado e morto no interrogatório semanas depois da partida”, conta o autor.

Segundo ele, foi difícil chegar à verdadeira história, pois os jogadores de futebol eram vistos como potenciais colaboradores do nazismo. “Foi só depois que Leonid Brejnev chegou ao poder na Rússia, em meados dos anos sessenta, que o clima relaxou. Brejnev era ucraniano, então talvez entendesse melhor o contexto da história do que outros”, diz.

O ex-atacante Makar Goncharenko (1912-1997) também falou sobre as mortes dos colegas em longa entrevista concedida a uma rádio em 1992.

“Eles morreram, como tantos outros soviéticos, porque dois sistemas totalitários [o nazismo e comunismo soviético] estavam se enfrentando e eles [colegas de time] estavam fadados a serem vítimas daquele massacre em grande escala. Qualquer um podia ser executado: guerrilheiros, comissários, judeus, ciganos”, disse, que relembrou também as incríveis estatísticas da equipe.

“Houve 9 vitórias em 9 jogos, o time marcou 46 gols e concedeu apenas 11. E isso não é uma lenda, aconteceu mesmo.”

Estátua homenageia o FC Start como um símbolo da resistência ucraniana aos nazistas - Joseph Sywenkyj/New York Times

A prova de que o time formado em sua maioria por ex-jogadores do Dínamo de Kiev mexe com o orgulho e forma parte importante da história dos ucranianos podem ser vistas em homenagens a eles na capital do país.

Em frente ao estádio do clube existe a imagem de quatro atletas esculpidos em uma pedra com a seguinte frase: “Aos jogadores que morreram com a cabeça levantada ante o invasor nazista”.

Outra homenagem, também marcante, está no campo onde o “Jogo da Morte” foi disputado, em 1942. 

No antigo estádio Zenit, rebatizado de Start, a estátua de um forte homem nu com uma bola nos pés passando por cima de uma águia, símbolo dos nazistas, eterniza o feito dos padeiros de Kiev.

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